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Realidades paralelas em Glasgow

Ativistas seguram uma faixa em protesto na COP26 em Glasgow, na Escócia - HANNAH MCKAY/REUTERS
Ativistas seguram uma faixa em protesto na COP26 em Glasgow, na Escócia Imagem: HANNAH MCKAY/REUTERS

Colunista do UOL

17/11/2021 04h00

Helena Margarido Moreira*

Duas imagens circularam em redes sociais na última semana. A primeira retratava encontro burocrático e esvaziado no pavilhão Brasil da 26ª Conferência do Clima das Nações Unidas (COP26). Era patrocinado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).

A segunda mostrava evento simultâneo, dinâmico e lotado, no Brazil Climate Action Hub, criado por organizações da sociedade civil para dar visibilidade às ações climáticas brasileiras nas COPs.

Essas imagens circunstanciais dão o tom do que foi a COP26 realizada em Glasgow (Escócia) ao longo das duas últimas semanas.

A bem da verdade, foram duas COP 26: a COP das negociações oficiais sobre minúcias da regulamentação do Acordo de Paris (como o mercado de carbono) e do greenwashing; e a COP da sociedade civil, da agitação social, da potência das ruas e das vozes das populações indígenas, negras, quilombolas, dos povos oprimidos demandando justiça climática e o fim dos combustíveis fósseis.

A Conferência do Clima de Glasgow, adiada em um ano, teve início sob altas expectativas e pressão da comunidade internacional.

Em agosto, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), que reúne evidências científicas sobre o aquecimento global e as mudanças climáticas em curso e serve como subsídio aos negociadores nas COPs, divulgou relatório distópico.

Incêndios, inundações, enchentes, calor extremo, longas estiagens e derretimento de gelo no Ártico são realidade frente a um aquecimento médio do planeta em 1,1? desde os níveis pré-industriais.

Neste sexto relatório, o IPCC alerta que o mundo aquecerá no mínimo 1,5? em duas décadas, e que somente cortes ambiciosos nas emissões dos gases que causam o efeito estufa (GEE) evitarão os piores cenários.

Nos primeiros dias da COP 26, os discursos dos chefes de Estado pareciam alinhados com a necessidade de comprometimento com a redução da emissão de GEE... para 2050.

Um mês antes da Conferência de Glasgow, a ativista Greta Thunberg já havia denunciado a tática que continuaria a ser usada por vários líderes nas negociações oficiais: o uso de "palavras bonitas" para negar e atrasar medidas necessárias para responder à emergência climática.

A urgência também foi o cerne do discurso de Txai Surui, primeira indígena e única brasileira a discursar na abertura do encontro. A jovem liderança reivindicou a presença dos povos indígenas, os povos da terra, no centro das negociações.

txai - Paul ELLIS / AFP - Paul ELLIS / AFP
Ativista indígena Txai Suruí, 24, do povo Paiter Suruí e fundadora e coordenadora do movimento da Juventude Indígena de Rondônia
Imagem: Paul ELLIS / AFP

Discursos, entretanto, não disfarçam o caráter excludente desta COP. Diversos representantes da sociedade civil não conseguiram se cadastrar a tempo como observadores de delegações nacionais e sofreram com dificuldades impostas pela vacinação contra a covid-19 (atrasada em muitos países) e pelos custos da ida à Glasgow.

Por outro lado, mais de 500 lobistas da indústria fóssil foram credenciados para esta conferência, número superior ao da maior delegação de um país, no caso o Brasil.

Boa parte da delegação brasileira foi composta, por exemplo, por congressistas (majoritariamente da base governista), representantes da indústria e do agronegócio, governadores e prefeitos.

Isso gerou percepção de que o país estava mais preocupado em apresentar imagem verde para fins empresariais do que planos para engajamento concreto nos esforços necessários.

A COP26 teve, na primeira semana, dois resultados importantes, ainda que insuficientes. Vários países, Brasil inclusive, assinaram duas declarações relativas a temas prioritários para o combate à crise climática.

A primeira promete deter e reverter o desmatamento até 2030, repetindo compromisso não cumprido da Declaração de Nova York sobre Florestas, assinada em 2014. Esta declaração exige também que empresas se desvinculem de commodities ligadas ao desmatamento, demandando maior rastreabilidade dos produtos vindos de áreas de florestas.

A esse respeito, o anúncio conjunto EUA-China sobre aprimorar a legislação sobre produtos derivados de desmatamento coloca mais pressão sobre o Brasil.

A segunda declaração promete redução de 30% até 2030 das emissões globais de metano, um dos mais potentes gases de efeito estufa, mas não contou com a assinatura de alguns dos maiores emissores, como China, Rússia e Índia.

As negociações internacionais sobre mudanças climáticas são complexas e técnicas. Podemos resumi-las em quatro grandes temas: mitigação, adaptação, financiamento e justiça climática.

A mitigação trata das metas de redução das emissões de GEE que estão descritas nos planos climáticos atualizados entregues pelos países até o início da conferência (as NDCs).

Em geral, houve compromisso em zerar as emissões líquidas de carbono entre 2050 e 2060. A descontinuação de combustíveis fósseis (phase-out) acabou ficando de fora do texto, sendo substituída pela necessidade de redução dos gases (phase-down) até 2030.

protesto - Ben STANSALL / AFP - Ben STANSALL / AFP
Imagem: Ben STANSALL / AFP

Apesar da menção aos combustíveis fósseis ser histórica, o adiamento das ambições significa que os governos atuais estão colocando a bomba no colo de seus sucessores, sobre as futuras gerações, pois poucos apresentaram metas robustas imediatas de redução.

Adaptação se refere às ações necessárias para que os países desenvolvam capacidade de se adaptarem às mudanças climáticas em curso, o que exige novas infraestruturas econômicas e tecnológicas.

Aprimorar mecanismos de perdas e danos, com financiamentos para superar transtornos, também é ponto importante das negociações, especialmente por parte de países mais vulneráveis como os "Pequenos Estados-Ilha".

Porém, apesar dos belos discursos, faltaram avanços no financiamento para países mais pobres e em perdas e danos no Pacto Climático de Glasgow.

Justiça climática é a compreensão de que os impactos do aquecimento global atingem grupos sociais distintos de formas e intensidades diferentes. Tal visão é essencial para pautarmos uma transição para economias de baixo carbono que seja justa, sem deixar ninguém para trás.

Não basta, portanto, investir em tecnologias verdes, em agricultura de baixo carbono, em energias renováveis, sem políticas públicas que capacitem os trabalhadores para esses novos tipos de empregos, por exemplo.

Justiça climática e o fim do uso de combustíveis fósseis estiveram entre as principais demandas dos representantes da sociedade civil, que fizeram barulho, agitaram a blue zone da COP26 com debates importantes e com diversidade e pressionaram para que estes temas fossem incluídos na declaração final, que contou com menção à transição justa.

A cola que liga tudo é o financiamento climático. Os países em desenvolvimento e menos desenvolvidos têm grandes necessidades de recursos para ações climáticas mais ambiciosas.

A promessa de investimentos de US$ 100 bilhões anuais feita pelos países desenvolvidos em 2015 ainda não saiu do papel, entretanto nos últimos anos estes mesmos países liberaram trilhões de dólares em subsídio à exploração de combustíveis fósseis. Portanto, os recursos já existem, mas eles precisam ser mobilizados.

Parte desta discussão está relacionada à regulamentação do Artigo 6 do Acordo de Paris, que foi aprovada e trata do mercado de carbono sob o novo regime climático.

Considerando a dinâmica das negociações e a continuidade do Acordo de Paris, a regulamentação do mercado de carbono é importante, mas não pode servir de muleta para que os países não implementem o essencial: o fim do uso de combustíveis fósseis.

Financiamento tem sido ponto central do posicionamento brasileiro nas COPs desde o início do governo Bolsonaro. Não que o interesse no tema seja novo para o Brasil, mas sob Ricardo Salles e Joaquim Leite o país tem condicionado possíveis ações de combate ao desmatamento ao recebimento de recursos externos, por meio, por exemplo, dos mecanismos de mercado previstos no Acordo de Paris.

O Brasil foi a Glasgow, sem o presidente, apostando no "greenwashing" em parceria com setores privados. Chegou prometendo redução de 50% das emissões, fim do desmatamento ilegal até 2030 e net zero até 2050, o que na verdade não é maior do que a meta proposta em 2015, ainda no governo de Dilma Rousseff (PT).

O Brasil tentou se colocar como "parte da solução" com uma postura mais cooperativa e "verde", mas que até o momento se reduz a anúncios desprovidos de gestos concretos.

O relatório sobre os mil dias de governo Bolsonaro publicado pelo Observatório do Clima não nos deixa esquecer que é um governo marcado pelo desprezo à ciência, aos dados e ao conhecimento especializado. O governo Bolsonaro é responsável por desmontes do aparato ambiental do país e de seus órgãos de fiscalização e por paralisar fundos para descarbonização da economia.

O desmatamento responde pela maior parte das emissões brasileiras e um comprometimento real com o fim do desmatamento ilegal poderia render ao Brasil uma meta de redução das emissões brasileiras em 78%, conforme estudo apresentado por Tasso Azevedo também durante a COP26.

Até hoje, nenhum país do mundo assumiu este nível de ambição em suas metas de mitigação e, portanto, o Brasil poderia assumir lugar de protagonismo caso estivesse de fato comprometido com a redução do desmatamento na Amazônia.

Mas o que vimos na COP26 foi o governo escondendo dados sobre a taxa de desmatamento da Amazônia em 2021, assim como havia feito na COP25, em 2019, ainda na gestão de Salles.

Não há confiança da comunidade internacional nos anúncios brasileiros na COP26 nem nas declarações assinadas pelo país. São palavras vazias, realidades paralelas

O Brasil se omite diante de questões fundamentais. Tenta apresentar imagem verde, mas não possui planos concretos para redução das suas emissões, para zerar o desmatamento na Amazônia e em outros biomas. A derrubada das florestas, do cerrado e a agenda pautada no Congresso Nacional são incongruentes com as falas do ministro Joaquim Leite na COP 26.

Em 2009, em minha dissertação de mestrado, argumentava que o Brasil não usava seus diferenciais competitivos para liderar as ações climáticas no mundo e se apoiava em alianças com países altamente fósseis, como China e Índia.

Mais de dez anos depois, o país continua desperdiçando seu alto potencial para energias renováveis e sua grande biodiversidade, preferindo se apequenar atrás de interesses mesquinhos e de ódio generalizado contra a vida.

* Helena Margarido Moreira é professora de relações internacionais e doutora em geografia pela USP (Universidade de São Paulo).