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OPINIÃO

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Indocumentação: um problema complexo e não-resolvido no Brasil

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Colunista do UOL

03/12/2021 18h55

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Arlene Martinez Ricoldi *

A questão da falta de documentação veio à tona com a divulgação do tema da redação do exame do ENEM realizado no último dia 21 de novembro, intitulado "Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil". Muitos colegas e discentes me procuraram para comentar o assunto, pois coordenei um estudo sobre a indocumentação de mulheres rurais, de abrangência nacional. Como meus colegas, até realizar a pesquisa, sabia e refletia pouco sobre a questão, ainda pouco discutida no Brasil, apesar de longe de estar resolvida. Por outro lado, é pedra angular da garantia de direitos, pré-requisito para o efetivo exercício da cidadania.

No entanto, no seu inicio, os processos de identificação e suas técnicas (como medição e categorização dos corpos, coleta e análise de digitais, entre outras) são adotados como forma de controle do Estado-Nação moderno, de matriz européia. Os primeiros esforços de coleta de informação e identificação de indivíduos são envidados para possibilitar a cobrança de impostos. Outra motivação é o controle de deslocamentos entre fronteiras desses Estados (PERICLES, RICOLDI, 2021), o que se tornam especialmente importantes a partir das Duas Grandes Guerras Atualmente, os documentos são comumente vistos como um instrumento, em grande medida, positivo. Com o advento do Estado de Direito e a generalização da democracia republicana, generaliza-se também a noção de que a comprovação de pertencimento àquela comunidade nacional dá acesso a direitos civis, políticos e sociais previstos em suas Constituições. No entanto, a visão de que os documentos de identidade podem ser algo negativo permanece em alguns países e grupamentos. Em especial, de acordo com a visão de sua população, ou partes dela, tem do próprio Estado, e o grau do sentimento de pertença por parte de seus cidadãos à sua comunidade nacional.

Não há, até hoje, estatísticas consistentes sobre a indocumentação, para além da pergunta do Censo 2010 sobre a presença de registro civil para crianças até 10 anos¹. Os índices de posse do registro de nascimento são, salvo exceções, altíssimos: acima de 90% para a população rural, e acima de 95% para a população urbana, de forma geral (v. PERES, BAENINGER, DEMETRIO, 2017). As exceções são justamente unidades da Federação onde há uma grande parcela de população indígena. Alguns exemplos são Amazonas, Mato Grosso do Sul e Roraima, estados nos quais a posse da Certidão de Nascimento para a população rural cai para índices em torno de 86%, 73% e 74%, respectivamente. Cariaga (2017) aponta que a população indígena, muitas vezes, tem resistências em emitir o "documento de branco", e não ser mais reconhecida em sua etnicidade, e em seus direitos (terras, programas sociais...).

A desconfiança da população, ou de segmentos dela, pode levar a essa indiferença ou mesmo, à resistência aos processos de identificação que se materializam nos documentos de identidade. No Haiti, país com um sério problema de indocumentação, a população em geral tem um forte sentimento de desconfiança do Governo, seja qual for. No entanto, com a intensa história de migração da população haitiana, em face de problemas sociais e econômicos, a busca por documentos de identidade ganhou importância, tornando-se obstáculo para aqueles que querem deixar o país em busca de melhores oportunidades (PERICLES, RICOLDI, 2021).

Por outro lado, o problema da indocumentação no Brasil, ainda que seja diferente em natureza e grau em relação ao Haiti, possui seus próprios meandros e dificuldades. Em primeiro lugar, a indocumentação total, isto é, a falta de registro civil é pequena e localizada em alguns bolsões específicos, sendo, proporcionalmente, pequena (menos de 2%), Entretanto, num país de dimensões continentais, soma o contingente nada insignificante de quase 3 milhões de pessoas. Ainda assim, pode-se afirmar que a política de generalização do registro civil nos últimos 20 anos teve enorme sucesso.

O maior problema segue sendo a indocumentação parcial. No Brasil, os processos oficiais de identificação são fragmentados, gerando a necessidade de emissão de diversos documentos, emitidos em "cascata": é preciso ter a Certidão de Nascimento para emitir o Registro Geral (RG) e o Cadastro de Pessoas Físicas², que, por sua vez, são necessários à emissão da Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), bem como outros documentos, como Carteira de Habilitação e identidades profissionais. Cada um desses documentos é de responsabilidade de um órgão diferente: a Certidão de Nascimento é emitida por Cartórios de Notas, o RG pelas Secretarias de Segurança Pública estaduais³, o CPF pela Receita Federal, a CTPS pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social?...

Nos rincões do país, seja nas áreas rurais, seja nas periferias, pululam grandes contingentes populacionais que, distantes do alcance do Estado e do significado do que representa ser cidadão brasileiro e os direitos associados, pouco compreendem a utilidade prática dos documentos, ou dominam a burocracia que envolve os diversos procedimentos para sua obtenção (e porque há tantos!). Comprovante de residência, certidões de nascimento ou casamento, preenchimento de formulários e dialogar com os balcões técnico-estatais não é tarefa que muitos se aventurem ou realizem com desenvoltura. Ao contrário, confusão e desânimo é o que muitos enfrentam, o que, não raro, desembocam no desalento em buscar documentos, e, como consequência, acessar direitos e políticas públicas.

Por fim, o programa de documentação para mulheres trabalhadoras rurais? cuja pesquisa coordenei entre 2014 e 2016 enfrentava diversos desses desafios. O problema da falta de documentos no Brasil não havia se apresentado a mim até o momento em que a oportunidade de coordenar esse estudo, como para muitos. Porém, o problema da indocumentação das mulheres trabalhadoras rurais já era um problema que os movimentos sociais do campo buscavam visibilizar há algumas décadas. Muitas mulheres do campo passavam a vida sem documentos devido a diversos fatores.

Os principais obstáculos para a desigualdade na posse de documentos entre homens e mulheres? nas áreas rurais eram de natureza cultural e territorial. Culturalmente, questões de gênero levavam a essa desigualdade porque a divisão sexual de trabalho reservava aos homens a relação com o público e com a cidade, onde também se localizavam os serviços públicos que emitem os documentos. Aos homens também eram reservados os deslocamentos para negociações de créditos com bancos, assistência técnica, venda de produção. Muitas mulheres permaneciam na propriedade, no trabalho doméstico, bem como com a produção de hortas e criação de animais para sobrevivência. Por conta dessa divisão de trabalho, não tiravam documentos que, de fato, pareciam não oferecer benefícios diretos. Em primeiro lugar, porque não se reconheciam como trabalhadoras rurais, mas sim como "donas-de-casa". Em contextos não-urbanos, a utilidade dos documentos não se faz presente no dia-a-dia. Com o advento da Constituição Federal de 1988, o direito de aposentadoria rural se concretiza, cuja obtenção não carece de contribuição, senão apenas da comprovação da atividade rural?. No entanto, o requisito de comprovação do trabalho rural era precedido pela posse de documentação. Sem ela, não era possível sequer iniciar o processo. Não por acaso, essa constituiu-se uma pauta prioritária do movimento de mulheres rurais, já há algumas décadas. Em 1997, a Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais (ANMTR) lançou a campanha "Nenhuma mulher trabalhadora rural sem documentos" (VASCONCELOS, RICOLDI, 2017)

Em 2004, finalmente, depois de demandas desses movimentos e algumas Marchas das Margaridas, uma política de natureza itinerante foi instituída, coordenada pela Diretoria de Políticas para as Mulheres Rurais e Quilombolas do Ministério do Desenvolvimento Agrário (ambos, atualmente extintos). O Programa era bastante complexo, pois envolvia diversos órgãos e Ministérios para sua execução. Além disso, um investimento bastante substancial foi feito quando da inclusão no orçamento a partir do Plano Plurianual (PPA) 2008-2011. Diversos equipamentos para uso exclusivo do programa foram adquiridos, como veículos, computadores e máquinas fotográficas digitais com impressoras. Também foram destinadas diárias para servidores que se dispusessem a participar dos mutirões, os quais, a depender da região e do planejamento, poderiam durar vários dias.

Até o momento daquela pesquisa, poucos trabalhos haviam se debruçado sobre o problema da indocumentação. Alguns levantamentos de ongs, estimativas, e os trabalhos de Cordeiro (2004, 2007) eram os únicos guias (além da estatística de registro civil no Censo 2010, já mencionada). A pesquisa, no entanto, não teve tempo de repercutir na execução do PNDTR que suas idealizadoras, as técnicas do MDA, tinham idealizado. Pouco depois da sua finalização, findava, de forma atribulada, o governo que instituiu esses programas.

Curiosamente ou não, alguns trabalhos foram realizados após o nosso, inclusive, servindo de orientação para a formulação do tema da redação do ENEM: a tese de doutorado da jornalista Fernanda de Escóssia, que se tornou um livro (2021), e diversos artigos por ela assinados, bem como também o mestrado da juíza Raquel Chrispino, que coordena programa de Erradicação do Sub-Registro do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, como se pode constatar em matéria recente do El Pais (OLIVEIRA, 2021). Felizmente, o que temos visto nos últimos 3 anos é que, se programas de políticas públicas são desmontados, ou perdem seu apoio governamental (orçamento, prioridade, recursos humanos) o corpo técnico Estatal, na pessoa de servidores como a juíza Raquel Chrispino, permite a "sobrevivência" da agenda das políticas públicas. A sociedade, por sua vez, tem feito seu papel, seja por meio da ciência ou da mídia, mobilizando-se em torno de questões tornadas relevantes depois de muita história ou luta. O tema da redação do Enem, por fim, foi a "cereja do bolo", que deu visibilidade ao tema desde então. Que venham outros!

*Arlene Martinez Ricoldi é doutora em sociologia pela Universidade de São Paulo e professora adjunta da Universidade Federal do ABC.

¹ À pergunta, oferecia-se 4 alternativas de resposta: 1. Não tem; 2. Do cartório; 3. Declaração de Nascido Vivo (DNV); 4. Registro Administrativo de Nascimento Indígena.

² É possível emitir o CPF logo no momento do Registro de Nascimento, mediante o pagamento de uma taxa. Evidentemente, os mecanismos de isenção de emissão de documentos, embora existente, nem sempre são de conhecimento da população mais carente.

³ Por meio de seus institutos de identificação, que possuem um complicado processo de periciamento de digitais. Cada estado, portanto, tem seu próprio documento, e diferentes condições técnicas de aferição de identidade, resultante dos recursos econômicos desiguais entre as unidades da Federação.

? O governo de Jair Bolsonaro extinguiu o Ministério do Trabalho após 88 anos de existência, logo na sua posse, em 1 de janeiro de 2019, tornando-se uma Secretaria Especial do Ministério da Economia. Recentemente (junho/2021) o Ministério foi recriado.

? Trata-se de uma pesquisa que procurou examinar o problema a partir da execução do Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural (PNDTR), criado em 2004. Para maiores informações, v. Ricoldi (2017)

? Havia um diagnóstico desses movimentos de mulheres sobre a dificuldade dessas em emitir documentos próprios, quando muitos homens da família o possuíam. Isso não quer dizer, no entanto, que não havia problemas de documentação entre os homens também, porém, em menor grau.

? A motivação para esse benefício é a pouca ou nenhuma monetização de grande parte da população que vive da agricultura familiar. A aposentadoria rural instituída em 1988, foi instrumento importante de distribuição de renda e de política social, possibilitando que parte dessa população permanecesse no campo

Referências bibliográficas

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CORDEIRO, Rosineide. Além das secas e das chuvas: Os usos da nomeação mulher trabalhadora rural no sertão central de Pernambuco. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2004.

______. Vida de agricultoras e histórias de documentos no sertão central de Pernambuco. Estudos Feministas, v. 15, n. 2, p. 453-460, 2007.

ESCÓSSIA, Fernanda da. Invisíveis, uma etnografia sobre brasileiros sem documentos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2021.

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PERES, Roberta Guimarães. BAENINGER, Rosana. DEMÉTRIO, Natalia Belmonte. Perfil da população rural feminina - um diagnóstico inicial. In. RICOLDI, Arlene (org). Mulheres Rurais e documentação : um direito conquistado. São Paulo, Fundação Carlos Chagas, 2017, p. 39-106.

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RICOLDI, Arlene M. Desenvolvimento Político e Administrativo do PNDTR. In. RICOLDI, Arlene (org). Mulheres Rurais e documentação : um direito conquistado. São Paulo, Fundação Carlos Chagas, 2017, p. 107-126.

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