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Saúde e federalismo nas decisões do STF sobre a pandemia

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justiça, martelo, tribunal Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

16/12/2021 16h01

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Lígia Mori Madeira*

Não é novidade, já passados quase dois anos de convivência com o Coronavírus, o comportamento ativo do Supremo Tribunal Federal, gerenciando conflitos entre entes federativos, especialmente vetando ou constrangendo o Executivo Federal naquilo que contraria as recomendações sanitárias e garantindo que estados e municípios ajam de maneira a controlar localmente o curso da pandemia. Ao longo de 2020 e início de 2021 pesquisadores do campo de políticas públicas, cientistas políticos e juristas dedicaram-se a acompanhar e prospectar tendências em relação às ações do controle de constitucionalidade interpostas ao tribunal. No período, partidos políticos de oposição e confederações sindicais e entidades de classe estiveram ativos na busca pelo constrangimento aos atos de Bolsonaro e o tribunal garantiu que a inação ou a ação contrária às medidas sanitárias fossem bloqueadas, o que aparentemente implicava em uma mudança na postura em relação a nosso federalismo[1].

O comportamento do tribunal, a despeito de sua importância e da solidez dos argumentos apresentados em muitas decisões que, apesar de tomadas de posição monocráticas, tiveram confirmação em plenário, reforçando também a colegialidade, suscitou a dúvida quanto a se tais mudanças são indicativos de transformações duradouras ou de comportamentos sazonais ou restritos a determinadas matérias. Enfim, temos perguntado sobre o quanto, em relação ao federalismo e em relação às políticas de saúde, o STF na pandemia destoa de seu padrão de julgamento moldado ao longo dos últimos anos.

Nos últimos meses decisões importantes, que atingem diretamente a vida de muitas famílias, dão indicativos das tendências apontadas acima quanto a uma manutenção de entendimento em relação às políticas de saúde, com restrição de autonomia de entes subnacionais, quando estes dispõem de matérias relacionadas ao Coronavírus, mas não diretamente vinculadas ao tema da saúde pública e das medidas sanitárias impostas para combate à pandemia.

Referimo-nos às decisões que garantem a estados e municípios a competência de decidir pela vacinação de adolescentes (ADPF 756) e, por outro lado, que consideram que a concessão de descontos em mensalidades através de leis municipais e estaduais é inconstitucional.

Quanto à vacinação de adolescentes na faixa de 12 a 17 anos, decisão liminar do relator Ministro Ricardo Lewandowski em 21.09, foi seguida pela unanimidade dos ministros em sessão do plenário virtual encerrada em 08.10, atendendo a pedido de diversos partidos políticos (PSB, PT, Psol, PCdoB e Cidadania) quanto à retomada da imunização após suspensão pelo Ministério da Saúde. A decisão levou em conta as avaliações das agências de vigilância sanitária tanto brasileira, quanto dos principais países do mundo, assim como de entidades internacionais e nacionais de saúde que recomendam o uso do imunizante da Pfizer para essa faixa etária.

O fundamento principal da decisão foi de que "decisões administrativas relacionadas à proteção à vida, à saúde e ao meio ambiente devem observar balizas, normas e critérios científicos e técnicos, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacionais e nacionalmente reconhecidas". Segundo a decisão, a vacinação de adolescentes deve ser definida pelos entes, desde que observadas as recomendações dos fabricantes das vacinas, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, das autoridades médicas e respeitando a ordem de prioridades. A suspensão da recomendação da vacinação de adolescentes sem comorbidades pelo Ministério da Saúde não teria amparo em evidências científicas.

Tal qual em outros momentos, concedida a tutela de urgência e dada a grande repercussão negativa, o Executivo Federal voltou atrás em sua decisão. A desobediência por parte de muitos estados e municípios que não suspenderam a vacinação dava indícios também de que a suspensão seria inócua. Segundo Maia, a decisão dos ministros deixaria o precedente pronto para futuras suspensões do gênero, reforçando a autonomia de estados e municípios no combate à pandemia da Covid-19, já definida em plenário em outras decisões afirmando que os entes federados têm competência concorrente para adotar as providências necessárias ao combate da pandemia.

A preocupação do STF com decisões baseadas em evidências científicas da área da saúde não é nova, na verdade revela a continuidade da tendência já estabelecida pela corte desde final dos anos 2000, cujos marcos da Audiência Pública no 4 sobre judicialização do direito à saúde 2009), o julgamento do Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada no. 175 (STA 175 - AgR/CE) em 2010, ambos de relatoria do ministro Gilmar Mendes, e as atividades do Fórum Nacional do Poder Judiciário para a Saúde, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), instituído pela Resolução no 107, de 06 de abril de 2010, inauguram uma terceira fase comportameto do STF em materia de direito à saúde: a Medicina Baseada em Evidências (MBE) ou Implementação de Critérios Científicos (ICC)[2].

Em decisão em sentido oposto, a Ministra Rosa Weber como relatora das ADPFs 706 e 713 havia manifestado-se pela autonomia das instituições de ensino superior para negociarem descontos nas mensalidades em razão da pandemia da COVID-19. As ADPFs, interpostas pelo Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (Crub), que representa 130 universidades, centros universitários e faculdades (ADPF 706), e pela Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup), autora da ADPF 713, atacavam a chamada concessão linear de descontos em estabelecimentos de ensino privados, imposta tanto por leis estaduais quanto por decisões judiciais de âmbito estadual que aplicaram descontos compulsórios.

Há poucas semanas o plenário decidiu, por amplíssima maioria (9x1) pela inconstitucionalidade das decisões judiciais que concederam descontos, definindo não ser cabível ADPF para contestar as leis estaduais, que deveriam ser objeto de ADI, conhecendo totalmente a ADPF 706 e parcialmente a ADPF 713. No julgamento da ação prevaleceu o posicionamento da relatora Rosa Weber, que se manifestou pela prevalência dos contratos, baseando-se no argumento que a crise econômica atingiu a todos, não só os consumidores, sustentando que se deve levar em consideração os preceitos fundamentais da livre iniciativa, da isonomia, da autonomia universitária e da proporcionalidade.

Embora as duas ADPFs não tenham tido sucesso na contestação, por representantes de entes privados, da autonomia dos estados em garantir descontos em mensalidades escolares através de leis estaduais, tal insucesso deve-se exclusivamente à classe processual escolhida, não à tese em si.

O STF já vinha se posicionando pela inconstitucionalidade da concessão de descontos em mensalidades escolares por lei estadual, por constituírem "uma interferência na essência do contrato, a qual suspende a vigência de cláusulas contratuais que se inserem no âmbito da normalidade dos negócios jurídicos onerosos". Este foi o argumento da decisão da ADI 6445, que julgou a inconstitucionalidade da Lei estadual 9.065/2020 do Pará.

Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) também declarou a inconstitucionalidade da Lei estadual 8.864/2020 do Rio de Janeiro, que estabeleceu a redução das mensalidades na rede privada de ensino durante o estado de calamidade pública decorrente da pandemia da covid-19 (ADI 6448). O STF já havia invalidado leis dos Estados do Ceará, do Maranhão e do Pará no julgamento das ADIs 6423, 6435 e 6445.

As ações confirmam a tese levantada por OLIVEIRA E MADEIRA de que, em relação ao federalismo, o comportamento do tribunal em garantir autonomia a estados e municípios não se revela absoluto, restringindo-se a matérias específicas de controle sanitário. Para as demais matérias, especialmente as que envolvem questões econômicas, a corte demonstra continuidade na manutenção da competência da União. Conforme dissemos no artigo, o fato de o governo federal mais perder do que ganhar nas ações interpostas no STF em temas da pandemia, não indica uma mudança de posição, com consequentes ganhos a estados e municípios e as ações acima parecem ilustrar novamente que a autonomia de estados e municípios restringe-se a aspectos sanitários da Covid, mas não alcança questões econômicas que têm a pandemia como causa. Para essas, a postura liberal do tribunal parece manter a estabilidade.

[1] Para conhecer mais sobre o papel do judiciário no combate à pandemia ver: OLIVEIRA, Vanessa Elias; MADEIRA, Lígia Mori. Judicialização da política no enfrentamento à Covid-19: um novo padrão decisório do STF? Revista Brasileira de Ciência Política, n. 35, 2021; VASCONCELOS, Natalia Pires de; ARGUELHES, Diego Werneck. Covid-19, federalismo e descentralização no STF: reorientação ou ajuste pontual? In: Machado, Laura. Legado de uma pandemia: 26 vozes discutem o aprendizado para política pública. Rio de Janeiro, RJ: Autografia, 2021; FIGUEIREDO, Iara Veloso Oliveira et al. Judicialization of administrative measures to tackle the COVID-19 pandemic in Brazil. Revista do Serviço Público, v. 71, p. 189-211, 2020; GOMES, Jose; CARVALHO, Ernani; ANDRADE BARBOSA, Luis Felipe. Políticas Públicas de Saúde e Lealdade Federativa: STF afirma protagonismo dos governadores no enfrentamento à covid-19. Revista Direito Público, v. 17, n. 94, 2020; OLIVEIRA, Fabiana Luci de. Judicialização da política em tempos de pandemia. Contemporânea, São Carlos, v. 10, n. 1, p. 389-398, jan.-abr. 2020.

[2] Tese apresentada em: CUNHA, Jarbas Ricardo Almeida. Por uma desjudicialização da política pública de saúde no Brasil: uma análise a partir do Supremo Tribunal Federal. Publicações da Escola da AGU, [s. l.], v. 11, n. 4, p. 125-138, 2019.

*Lígia Mori Madeira é Professora Associada do Departamento de Ciência Política e do PPG em Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: ligiamorimadeira@gmail.com.