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Diálogos Públicos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Educação democrática contra os fantasmas do passado e do presente

31.mar.2014 - Parentes de desaparecidos políticos, estudantes e integrantes de movimentos sociais seguram cartazes de desaparecidos na época da ditadura militar durante ato no pátio do 36º DP, no Paraíso, zona sul de São Paulo. - Danilo Verpa/Folhapress
31.mar.2014 - Parentes de desaparecidos políticos, estudantes e integrantes de movimentos sociais seguram cartazes de desaparecidos na época da ditadura militar durante ato no pátio do 36º DP, no Paraíso, zona sul de São Paulo. Imagem: Danilo Verpa/Folhapress

Colunista do UOL

24/03/2022 18h30

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Pedro Helena Pontual Machado e Ricardo Lins Horta*

Cidadãos precisam saber sobre o papel das instituições republicanas e seu funcionamento, mas sobretudo que o Estado democrático de direito não se sustenta sem a participação ativa e continuada da sociedade. Porém, uma sociedade marcada pela violência e pela violação sistemática de direitos humanos jamais poderá viver a democracia de forma plena. No ano em que o Brasil completa o bicentenário de seu nascimento como Nação independente, o esclarecimento de episódios de graves violações segue sendo uma tarefa inconclusa e indesejada.

O dia 24 de março é uma data que nos convida a refletir sobre a importância de buscar a verdade e a memória como forma de educação para a democracia. Em 2010, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, com o protagonismo da representação brasileira, proclamou o dia 24 de março como Dia Internacional pelo Direito à Verdade, em homenagem à figura do arcebispo salvadorenho Óscar Romero, assassinado nessa data em 1980. Em 2018, a data foi incluída por lei no calendário brasileiro de datas comemorativas, dedicada "à reflexão coletiva a respeito da importância do conhecimento circunstanciado das situações em que tiverem ocorrido graves violações aos direitos humanos, seja para a reafirmação da dignidade humana das vítimas, seja para a superação dos estigmas sociais criados por tais violações".

A observação do direito à Memória de um país garante que se saiba em que circunstâncias, e pela ação de quais agentes do estado, foram perpetrados atos ilegais que vitimaram cidadãos. Contrariamente ao que muitos acreditam, esquecer não faz a violência passada desaparecer - ela segue viva nos corações das pessoas que perderam seus entes queridos, e segue viva nas práticas que se repetem. O esquecimento leva à persistência da violação de direitos humanos, sem que se rompa esse ciclo.

Kathryn Sikkink, Professora do Centro de Direitos Humanos da Escola de Governo da Universidade de Harvard, analisou as transições democráticas da América Latina, "constatando que países que processaram judicialmente violadores de direitos humanos têm hoje melhores práticas com relação a países que não o fizeram"[i]. "Os resultados sugerem que não apenas a punição importa, como também é importante resgatar a verdade."[ii] Ou seja, aquelas nações em que não se se enfrentou o legado de governos autoritários do passado seguem com forças de segurança pública mais truculentas. "Ainda que as causas de violência policial no Brasil hoje sejam bastante complexas, é possível que a anistia irrestrita de violações passadas de direitos humanos continue a alimentar uma cultura de impunidade que torna mais possível a violência policial"[iii], conclui o estudo. Isso sugere que, no caso do Brasil, nossa mal-resolvida relação com a ditadura militar de 1964 pode estar por trás da difusão desse imaginário profundamente antidemocrático de alguns setores da sociedade.

A Verdade é um direito das vítimas e de seus familiares, mas também um instrumento de transparência que serve como vacina para que o Estado deixe de ser agente opressor contra seus próprios cidadãos. Uma sociedade democrática é aquela em que todos participam ativamente do processo político, fazendo com que agentes do Estado que violem direitos humanos estejam sujeitos à responsabilização. Nesse sentido, um avanço inegável foi concretizado com a Lei de Acesso à Informação, promulgada em 2011, que determinou que "as informações ou documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas não poderão ser objeto de restrição de acesso".

A Comissão Nacional da Verdade entregou seu relatório final em 2014, no qual se narraram inúmeros episódios em que agentes do Estado praticaram, incentivaram ou permitiram a prática sistemática de tortura, mortes e desaparecimentos. Muitos dos documentos da época, no entanto, foram destruídos, conforme relatos oficiais das Forças Armadas. Assim, a tarefa de desvelar a Verdade sobre a ditadura militar segue inconclusa.

O presente também demanda esforços por Memória e Verdade. No momento em que o Brasil segue de luto por seus quase 670 mil pais, mães, filhos, avós que se foram na pandemia, educar para a memória e a verdade é ampliar a consciência de que, se parte dessas vidas se perdeu pelo arbítrio ou pela omissão deliberada de autoridades estatais, isso não pode ser esquecido. As circunstâncias da má gestão da saúde precisam ser apuradas, para que no futuro, a sociedade considere inaceitável qualquer descaso com a vida humana por parte das autoridades.

Mas nossa história é feita de esquecimentos intencionais há mais tempo. Quando da abolição da escravidão no Brasil, houve deliberado esforço na destruição de documentos referentes às transações comerciais de seres humanos. Hoje, há um importante empenho no resgate desse sombrio passado, para que a crueldade de que somos capazes torne-se conhecida e estudada. Aos poucos cresce na sociedade a consciência da magnitude da violação sistemática de direitos da escravização de milhões de pessoas traficadas à força para o Brasil colonial, sob os auspícios do Estado. Lamentavelmente, o legado da escravidão segue muito presente no cotidiano do Brasil, sem ser devidamente enfrentado.

Em 2008, a Secretaria de Direitos Humanos realizou uma pesquisa de opinião pública sobre a Percepção sobre os Direitos Humanos no Brasil, com mais de 2 mil entrevistas em 150 municípios. Os resultados mostraram que, já naquela época, a maioria dos respondentes (70%) identificava o enfrentamento da discriminação racial como ação prioritária. Infelizmente, a triste história de pessoas que saem de sua casa em comunidades e favelas pela manhã, para estudar e trabalhar, mas não retornam para seus entes queridos por terem sido vítimas da violência, segue sendo uma das principais chagas do país.

A falta de educação democrática se reflete ainda na disseminação de concepções autoritárias da ação estatal. Infelizmente, muita gente ainda sustenta que a censura e a repressão do AI-5 teriam sido medidas aceitáveis e até mesmo positivas, ou acredita ser normal e desejável identificar a segurança pública com a ideia de extermínio de um inimigo, o "bandido" assim definido sempre que morto pela polícia. Ora, uma sociedade que tolera ações policiais violentas contra seus cidadãos não só contraria os princípios democráticos mais elementares, como também acaba por elevar o risco à vida dos próprios profissionais de segurança pública.

Quando violações de direitos humanos ocorridas no passado não são enfrentadas, o problema não se resolve. Ao contrário, as questões persistem, comprometendo o presente. A data de hoje é uma oportunidade para se encarar de peito aberto os desafios que a nossa democracia ainda tem para enfrentar.

[i] "In sum, we found that countries with human rights prosecutions have better human rights practices than countries without prosecutions." Sikkink, Kathryn. The Justice Cascade: How Human Rights Prosecutions Are Changing World Politics (The Norton Series in World Politics) (p. 185). W. W. Norton & Company, 2011. Edição do Kindle.

[ii] "Our finding suggests not only that punishment matters but that truth-telling matters as well." ibid

[iii] "Although the causes of police violence in Brazil today are very complex, it is possible that the full amnesty for past human rights violations continues to feed a culture of impunity that makes police violence more likely." Sikkink, Kathryn. The Justice Cascade: How Human Rights Prosecutions Are Changing World Politics (The Norton Series in World Politics) (p. 159). W. W. Norton & Company. Edição do Kindle.

Esse texto é fruto de parceria entre a Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ANESP) e a Coluna Diálogos Públicos.

*Pedro Helena Pontual Machado, Mestre em Políticas Públicas (Indiana University) e Mestre em Administração Pública (Harvard), e Ricardo Lins Horta Doutor em Direito (UnB) e Mestre em Neurociências (UFMG), são membros da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG). Ambos serviram como Secretários-Executivos da Comissão Nacional da Verdade.