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Diálogos Públicos

OPINIÃO

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Gestão de riscos: o burocrático e a essência nas políticas públicas

Carolina Maria Viriato Freitas, bombeira mineira que atuou em Brumadinho e Petrópolis - Canal UOL
Carolina Maria Viriato Freitas, bombeira mineira que atuou em Brumadinho e Petrópolis Imagem: Canal UOL

Colunista do UOL

13/04/2022 16h06

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Marcus Vinicius de Azevedo Braga*

Na aula fictícia do curso de gestão de riscos aplicado ao setor público, o professor, em uma tentativa lúdica de tornar menos árido o tema, começa a aula com a música "Tempo Rei", de Gilberto Gil, e discorre sobre os conceitos relacionados ao risco, a incerteza, deslizando por conceitos e autores basilares, trabalhando trechos dessa peça musical de nosso mais novo imortal que explora o poderoso tempo, que nos aterroriza.

Um aluno, um tanto entediado, levanta a mão e pergunta: "-Professor, não podemos ir direto para a parte de preencher as planilhas?" O professor, meio que desapontado, avança essa parte mais filosófica da aula, pensando no valor que os ritos e os aspectos burocráticos tem em relação a essência das coisas. Um traço nacional que não se restringe a discussão da gestão de riscos.

A gestão de riscos desembarcou com força no setor público em 2016, em todos os níveis da federação, induzida pelos órgãos de controle, robustecida pelas discussões de integridade e figurinha fácil nas falas de cursos e palestras. Mas, para muitos, menos do que uma visão em relação a incerteza nas organizações, se reduz a tarefas burocráticas de preenchimento de planilhas que pouco dialogam com as grandes questões do cotidiano de empresas e órgãos públicos.

Gestão de riscos é uma forma sistemática de lidar com a incerteza. Como dizia Gil: "Não se iludam, não me iludo, tudo agora mesmo pode estar por um segundo." Para lidar com esse horror da incerteza, o ser humano foi desenvolvendo mecanismos que escalonassem esses impactos do que virá e que diferenciassem a probabilidade de sua ocorrência, desenhando salvaguardas para proteger os seus objetivos. Daí reside grande parte do mundo moderno, da vacina ao cinto de segurança, resultando em vidas mais longas e de melhor qualidade.

Uma revolução que começa séculos atrás, quando o imponderável começa a não ser aplacado exclusivamente pela fé, e o pensamento científico se debruça sobre a essência de processos para entender como eles ocorrem e como podem ocorrer. Um debate ainda em profusão, chegando as bancadas de escritórios e repartições no fim do século XX, mostrando que governos e as suas políticas públicas tem muito a se beneficiar na adoção dessa visão, com custos menores e maior eficácia.

É isso. Gestão de riscos é uma visão, uma forma de lidar com a incerteza de maneira sistemática, e que sim, para ser operacionalizada, necessita de sistemas, planilhas e documentos. Mas, é muito mais do que isso. É otimizar o cuidado, a proteção, o zelo na sua medida certa, atuando sobre o que é mais relevante, permeando as discussões estratégicas dessas organizações. A questão: "O que preciso fazer para esse problema não acontecer de novo?" é a essência da gestão de riscos.

No universo das políticas públicas, que lidam com múltiplos atores em complexas atividades, a variável da incerteza se faz presente, sendo capaz de derrubar ideias valorosas e causar prejuízos financeiros e políticos. Ao se desenhar um programa governamental, ali já surge a necessidade de se realizar um inventario dos principais fatores que podem afetar aquela iniciativa, estudando as suas causas, e pensando controles que protejam a ação governamental desses eventos. Parece óbvio, mas precisa ser sistematizado.

Da mesma forma, programas em curso, de alimentação escolar a aquisição de medicamentos, estão sujeitos ao condão da incerteza, a eventos que podem afetar a sua gestão com eficiência e efetividade, sendo o desperdício, a falta de coordenação e a corrupção os inimigos mais frequentes dessa tarefa cotidiana de gerir políticas públicas, e sim, para todos esses é possível se prever cenários e se estabelecer salvaguardas.

Se deter ao burocrático da planilha pode dar uma falsa sensação de segurança, na qual se acha que houve uma gestão efetiva do risco, mas não houve uma síntese dos principais riscos que se convertesse em medidas concretas da organização para dar conta destas, no famoso: "Nós sabemos, mas deixa para lá". A incerteza não precisa ser identificada ou percebida para agir. Ela está sempre desperta.

Então, não cabe improviso. O adjetivo sistemático atribuído a gestão de riscos é uma forma de dar um caráter científico a essa ação, pautada em evidências, em metodologia, de forma a filtrar a percepção do risco, priorizando aspectos mais objetivos. Em uma era de múltiplos produtores e consumidores de informação, de escândalos barulhentos e cotidianos, a percepção da comunidade do que é risco ou não pode ser muito distorcida, pautando o debate público de forma enviesada.

A gestão de riscos é algo complexo, mas ao mesmo tempo relevante, em especial no setor público. Demanda uma mudança filosófica em relação as forças que transformam as nossas velhas formas do viver, referenciando o querido Gil novamente. Muito mais do que soluções pasteurizadas, trazer a gestão de riscos para a agenda é ter uma preocupação com o que pode acontecer e com o que ocorreu, em um ciclo de aprimoramento que se traduz em uma governança mais efetiva. Gestão de riscos é gestão!

Estamos saindo de um período de pandemia, pelo que tudo indica, no qual os mecanismos de gestão de riscos de todos os países foram submetidos à prova. Grandes estruturas de saúde foram testadas em suas capacidades, e países que tinham investido parte do seu valor presente na preparação do futuro, e que diante dos problemas presentes souberam enxergar o futuro, tiveram um melhor desempenho.

O que se deseja é para além de se esperar a próxima pandemia. Que essa dor traga uma renovação paradigmática, na qual os governos de todo mundo saiam de posturas de "Mães zelosas e pais corujas" atormentados pelo medo e pela preocupação, gerando salvaguardas ao sabor de percepções de momento, ou adotando soluções burocráticas. Que se adote uma postura sistemática, estratégica, de olhar seus processos, suas organizações, mirando os objetivos a frente, mas identificando as pedras no caminho, para saber o que precisa ser feito "na hora do destino apresentar".

*Doutor em políticas públicas (PPED/UFRJ). Atualmente realiza estágio pós doutoral no IESC UFRJ