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STF pode ser chave para ampliação de creches

Colunista do UOL

08/09/2022 15h01

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Alessandra Gotti*

Votação no Supremo definirá o papel do Poder público na oferta de vagas em creche e balizará as decisões para todos os Tribunais de Justiça do país.

A educação está assegurada na Constituição Federal como direito da criança, a ser atendido com prioridade. Também é dever do estado ofertar educação infantil em creche e pré-escola às crianças de até 5 anos de idade, sendo a matrícula obrigatória a partir dos 4 anos e facultativa de 0 a 3 anos. Somado a isso, o Estatuto da Criança e do Adolescente determina a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas à proteção da infância e juventude. Com base nesse arcabouço legal, o entendimento jurídico no Brasil sobre a oferta de vagas em creche tem sido que o estado deve prover vaga e condições de acesso, uma vez existindo a demanda. Entretanto, segue pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação que pode confirmar esse entendimento, revê-lo ou trazer novidades que orientem medidas estruturais.

O tema já foi adiado sete vezes, e entra na pauta da corte pela oitava vez nesta quinta-feira, primeiro dia do terceiro século da independência do Brasil. Uma data simbólica, já que uma nação verdadeiramente independente só se constrói com educação de qualidade para todas e todos - e isso começa na primeira infância.

A ação a ser julgada no STF é um recurso do município de Criciúma (SC) e como o caso reflete uma situação frequente pelo país, passou a ser um tema de repercussão geral (Tema 548), servindo como diretriz para todos os Tribunais de Justiça.

O município alega não estar expresso na Constituição Federal a obrigatoriedade de ofertar educação para todas as crianças de 0 a 5 anos, nem uma meta obrigatória a ser cumprida. Desde 2012, porém, quando o caso chegou ao STF, o quadro mudou. Entrou em vigor a Emenda Constitucional nº 59/2009, a partir de 2016, que determina como obrigatória a Educação na pré-escola a partir dos 4 anos de idade - portanto, nesse ponto, a Constituição se tornou bastante clara. E o Brasil ganhou também os Planos Nacional, Estaduais e Municipais de Educação, em 2014, com metas para o atendimento em creche.

Mas, se já havia um entendimento jurídico, por que o STF está revendo isso agora? A judicialização de vagas em creche está dentre as maiores relacionadas à educação. A demorada espera por uma vaga leva muitas famílias a entrar com ações na justiça requerendo a matrícula, tornando esse um tema recorrente na Defensoria Pública, no Ministério Público, nos Tribunais de Justiça e no Executivo.

Se, por um lado, a judicialização tem um potencial de impulsionar a expansão de vagas na agenda da gestão pública, por outro lado, ela acaba ampliando a desigualdade. Como vagas em creches não se criam de uma hora para a outra, na prática, a família que tem ganho de causa acaba sendo passada à frente da fila, independentemente do contexto em que se encontra - sendo que o acesso à Justiça é mais crítico entre os mais pobres.

Segundo dados da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, cerca de 5 milhões de crianças de até 3 anos no Brasil precisam de creche por estarem no grupo econômico mais vulnerável. No entanto, apenas 24,4% delas estão matriculadas nessa etapa.

As decisões judiciais que desconsideram essa realidade, bem como as condições da gestão pública no país, incorrem no risco de reproduzir essa desigualdade. Dessa forma, há espaço para que a decisão do Supremo oriente uma reforma estrutural e mais efetiva na política de educação infantil no país, considerando: (1) a necessidade de expansão progressiva do atendimento em creche, com prioridade para as crianças em maior vulnerabilidade socioeconômica e tendo como parâmetros mínimos as metas definidas nos Planos Municipais de Educação; (2) o contexto fiscal e técnico dos municípios, observando o papel fundamental da União e dos Estados na assistência a esses dois aspectos.

Medida nesse sentido já foi tomada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), em 2013. Em uma ação proposta pelo Movimento Creche para Todos, o Tribunal determinou ao município de São Paulo a elaboração de um plano de expansão de 150 mil vagas em creches e pré-escolas, entre 2014 e 2016, com a obrigação de inserir verbas para a execução da proposta. A Coordenadoria da Infância e Juventude do TJSP, assessorada por um Comitê de Monitoramento interinstitucional, com representação do Sistema de Justiça, órgãos de controle e sociedade civil, ficou incumbida de monitorar, em diálogo com o Executivo, a cada seis meses, a ampliação do acesso e da qualidade ofertada nas creches.

Em dezembro de 2016, o sistema Escola OnLine da prefeitura apontava o acréscimo de 101.877 novas matrículas na educação infantil municipal - a maior expansão dessa etapa já realizada na capital. Ao final de 2020, a fila de espera por vagas em creche foi zerada, segundo dados da Prefeitura. Ainda que haja relatos de crianças aguardando por vagas mais próximas às suas residências, fator importante de ser observado pela gestão, a decisão estrutural do TJSP foi eficaz para induzir o aprimoramento da política pública de acesso à educação infantil, e contribuiu para a progressiva concretização desse direito social.

Direito que precisa, sem dúvida, ser reafirmado pelo STF no julgamento do tema 548, evitando o retrocesso no acesso à Educação Infantil no país. Não obstante reforçar esse compromisso constitucional, o Supremo tem também, a exemplo do que foi feito em São Paulo, uma oportunidade de apoiar a redução da judicialização individual no tema das creches, ao mesmo tempo em que pode fomentar o avanço da política pública para a primeira infância, tão essencial para a proteção e desenvolvimento integral das nossas crianças desde os primeiros anos de vida - especialmente em um cenário de tantos impactos negativos deixados pela pandemia.

* Alessandra Gotti é cofundadora e presidente executiva do Instituto Articule e doutora em Direito Constitucional pela PUC-SP.