Topo

Felipe Moura Brasil

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Entenda o golpe do orçamento secreto

Colunista do UOL

30/11/2021 17h34

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Resumo:

- O Congresso Nacional adotou o método de Sérgio Cabral de definir regras futuras para sair impune de transgressões passadas.

- O agravante é que as regras futuras, agora aprovadas na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, preservam brechas para a manutenção das transgressões.

Vamos por partes:

1.

Relembro trecho do meu artigo "Os rachadores do dinheiro do povo":

"O presidente da Câmara [Arthur Lira] controla a distribuição das emendas parlamentares a cargo do relator-geral do Orçamento, registradas sob o código identificador de resultado primário (RP) 9. Conhecidas como emendas de relator, elas totalizaram 20 bilhões de reais em 2020, ficaram em 16,8 bilhões em 2021 e a previsão é de 16 bilhões para 2022.

O dinheiro, dividido com o Senado Federal, ajuda a irrigar as bases de cada deputado ou senador com obras de infraestrutura e demais benefícios providenciais para suas campanhas de reeleição, já turbinadas com outros bilhões de reais do fundão eleitoral e do fundo partidário.

Em 2019, o então presidente do Senado, Davi Alcolumbre, chegou a liberar verbas extras de um ministério - o embrião das emendas de relator - para os senadores petistas Humberto Costa e Rogério Carvalho, e os pedetistas Acir Gurgacz e Weverton Rocha, de modo a garantir apoio para a eleição de seu sucessor, Rodrigo Pacheco. (...)

De todo modo, o mensalão, ou rachadão, só foi internalizado e institucionalizado no Orçamento com a rubrica RP 9, uma brecha para escolhas políticas, não técnicas. Em resumo: Lira compra apoio parlamentar para si e para Bolsonaro, liberando, sem transparência, a verba usada, igualmente sem transparência, para compra de votos dos eleitores, quando não de equipamentos com sobrepreço, como no caso do 'tratoraço'."

2.

A ministra Rosa Weber, do STF, suspendeu a execução das emendas de relator, destacando sua diferença em relação às emendas individuais e de bancada, cuja distribuição segue as exigências constitucionais de equitatividade e publicidade.

Ela também exigiu transparência sobre o caminho do dinheiro do Orçamento secreto já liberado a parlamentares, ao longo dos dois últimos anos. Na alínea 'a' de sua liminar, mantida por 8 votos a 2 no plenário virtual da Corte, a ministra escreveu:

"Quanto ao orçamento dos exercícios de 2020 e de 2021, que seja dada ampla publicidade, em plataforma centralizada de acesso público, aos documentos encaminhados aos órgãos e entidades federais que embasaram as demandas e/ou resultaram na distribuição de recursos das emendas de relator-geral (RP-9), no prazo de 30 (trinta) dias corridos."

3.

Em petição assinada pelos presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, o Congresso respondeu que "não há como cumprir o disposto na alínea 'a' da decisão cautelar quanto às solicitações que foram endereçadas ao relator-geral, pelos mais diversos meios (inclusive informais)".

Alegou que as leis orçamentárias de 2020 e 2021 "não preveem a formalização das solicitações encaminhadas ao relator-geral para fins de sugestão de alocação de recursos das emendas" e que seria inviável reunir "milhares de demandas".

Pediu ao Supremo, então, o "reconhecimento da impossibilidade fática e jurídica de cumprimento dos itens" da decisão que dizem respeito à retroatividade da transparência.

4.

O órgão técnico do Senado, porém, contrariou Lira e Pacheco. Em nota, a Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle declarou ser possível, sim, divulgar a relação dos parlamentares responsáveis pelas indicações das emendas de relator.

"Se houve 'milhares de demandas' e os relatores-gerais encaminharam-nas na forma de indicações, algum tipo de procedimento organizativo tiveram para fazê-lo, e algum registro documental ou informacional mantiveram para seu próprio controle; caso contrário, teriam agido sem saber o que estavam fazendo (o que evidentemente não é o caso). Nada, absolutamente nada, obsta que sejam publicadas essas informações. Não há 'impossibilidade fática'."

5.

A Câmara dos Deputados aprovou, por 268 votos a 31, um projeto de resolução que mantém secretos os parlamentares que indicaram as emendas de relator em 2020 e 2021. Foi a 'tratorada' do 'tratoraço'.

O texto ainda mantém o controle da distribuição na cúpula do Congresso e reforça que as alegadas medidas de transparência valem apenas daqui para frente.

"Mesmo assim, há brechas para que o toma lá, dá cá siga oculto", explicou o Estadão. "O texto permite que, na hora de registrar o autor do pedido de repasse, o relator-geral (cargo revezado entre Câmara e Senado anualmente) informe o nome de agentes públicos e até entidades da sociedade civil. Assim, um prefeito pode ter uma demanda atendida sem que se registre o nome do seu patrono, o parlamentar que lhe indicou o recurso. Esse risco é reconhecido por parlamentares que são contra o instrumento."

6.

Horas depois, o Senado Federal avaliou o projeto aprovado pela Câmara.

Para limitar o alto volume dos recursos, o relator Marcelo Castro (MDB-PI) estabeleceu que o valor máximo das emendas de relator será o total das emendas de bancada (R$ 5,7 bilhões) e individuais impositivas (R$ 10,5 bilhões).

Apesar disso, o senador Alessandro Vieira votou contra o texto.

Transcrevo seu discurso:

"Repito, com profunda tristeza, que o Congresso Nacional escolheu mentir para o Supremo Tribunal Federal, mentir para a sociedade: mentir ao dizer que não tem como rastrear as origens das indicações de 30 bilhões de reais.

Eu não estou falando de 30 reais, não estou falando de 300 reais. Eu estou falando de 30 bilhões de reais, que passaram pelas mesas de senadores e deputados, e que tinham sua destinação e sua distribuição controladas por planilhas. Essas planilhas foram, inclusive, divulgadas pela imprensa. Não é justo dizer que não é possível fazer isso. Ofende a inteligência dos brasileiros. Ofende o STF, que exigiu transparência.

E, [como se] não bastasse - apesar do esforço do relator, que merece sempre nossas homenagens, o colega Mascelo Castro -, o que agora se faz é cristalizar essa hipótese inconstitucional de que um só parlamentar possa dispor de quase 20 bilhões de reais para distribuição sem nenhum critério técnico, com transparência limitada.

É inacreditável que a gente imagine que um país consegue se organizar, que políticas públicas sérias possam ser estruturadas, quando o Orçamento tem essa feição tão fragmentada, tão voltada ao atendimento apenas de interesses políticos eleitorais - ou eleitoreiros, para não deixar de dar o caráter mais rasteiro a esse tipo de negociação.

E [que] não se diga que a gente está criminalizando a política. Essa é uma das frases mais repetidas nos últimos anos e mais equivocadas. A única coisa que criminaliza a política é político criminoso. O político criminoso criminaliza a política.

O que estamos exigindo - e não estamos sós nesta exigência, porque a sociedade exige e o Supremo determina - é transparência e qualidade no gasto. A Constituição não dá a ninguém, a nenhum parlamentar, o direito de fazer as coisas sem alvedrio. Ninguém.

Mas, infelizmente, novamente o Congresso não mostra, para usar as palavras do relator, a humildade necessária para fazer um mea-culpa, para entender que está exacerbando no exercício do poder, para entender que o voto elege senadores e deputados, mas não dá a ninguém o poder de ser dono do dinheiro dos brasileiros. Não dá a ninguém poderes absolutos e autoritários.

Nos falta, como coletivo, essa leitura básica do que é democracia. E, ao cometer essa falha, novamente abrimos as portas para que o Judiciário faça o seu papel de freio a esse exercício arbitrário de poder por parte do Legislativo.

Essa resolução, que provavelmente será aprovada, com voto contrário do Cidadania no Senado, será questionada na Justiça. Estaremos colhendo as assinaturas dos vários colegas que nos procuraram, para que prestemos essa informação à ministra Rosa Weber e ao STF: o Congresso se recusa a cumprir plenamente a ordem da Justiça.

É lamentável. Nós todos poderíamos estar aqui sentados decidindo como vamos pagar o Auxílio Brasil de forma efetiva para os mais de 20 milhões de brasileiros que passam fome. Nós poderíamos estar aqui sentados tentando decidir como vamos fazer para que a economia brasileira se movimente, os empregos cheguem e os mais de 14 milhões de desempregados tenham um futuro, uma esperança; como recuperar essa educação destruída miseravelmente pelo governo Bolsonaro. Mas nada. Estamos aqui tentando fazer filigranas para continuar fazendo manipulação orçamentária."

Como previsto, o Senado aprovou o texto, apesar da margem apertada: 34 votos a 32.

7.

O método Cabral funcionou no Congresso.

Agora só falta o STF fazer seu papel de sonso.