Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
O caso Garotinho ilustra o Brasil de Lula e Bolsonaro
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I.
Anthony Garotinho (União Brasil-RJ) é mais um político beneficiado pelas mudanças na Lei de Improbidade Administrativa, aprovadas no Congresso Nacional com votos de petistas, bolsonaristas e Centrão, em sua frente ampla pela impunidade.
Tanto a aprovação quanto seus efeitos e causas haviam sido analisados em detalhes no meu artigo "O sistema só cuida de si", publicado no UOL em 24 de maio de 2022.
Plantonista durante o recesso do Judiciário, o presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Humberto Martins, restabeleceu na quinta-feira, 14 de julho de 2022, os direitos políticos do ex-governador do Rio, ao suspender uma condenação de 2018 pela Justiça fluminense por improbidade, decorrente da participação de Garotinho em desvios da área da Saúde durante o mandato de sua mulher, Rosinha, como governadora do estado. As fraudes ocorridas entre 2005 e 2006 geraram mais de R$ 234 milhões de danos ao erário.
Martins se baseou na hipótese de que os prazos menores para prescrição e a exigência da comprovação de intenção para cometimento de crime venham a alterar o entendimento sobre a pena aplicada. Como não há decisão definitiva sobre o assunto no âmbito do STJ, o presidente da Corte argumentou que Garotinho seria prejudicado ao não poder concorrer na eleição deste ano, uma vez que, posteriormente, o tribunal poderia favorecê-lo.
Decisões semelhantes do presidente do STJ já haviam beneficiado o ex-governador José Roberto Arruda (PL-DF), candidato de Jair Bolsonaro para a eleição deste ano no Distrito Federal, e o vereador e ex-prefeito César Maia (PSDB-RJ).
Assim como o colega João Otávio de Noronha, que completa 66 anos em agosto, Martins, que faz 66 em outubro, é próximo da família Bolsonaro e cotado pelo presidente da República para uma das vagas no Supremo Tribunal Federal em caso de reeleição, motivo pelo qual o Congresso aprovou, com apoio do governo, a PEC que aumenta de 65 para 70 anos a idade máximo para indicação a tribunais de Justiça do país.
O próprio STF deverá julgar, no começo de agosto, a constitucionalidade das alterações na lei de improbidade, criticadas desde a raiz por procuradores e jornalistas independentes.
Em se tratando dos tribunais superiores brasileiros, compostos por mecanismos de apadrinhamento político, não surpreende que os julgamentos colegiados sobre mudanças legislativas sejam realizados somente após uma série de decisões favoráveis à classe política, quando o custo de revertê-las fortalece o entendimento redentor.
A hipótese de Martins, a rigor, é uma tendência, para não dizer, na prática, uma certeza.
II.
Horas depois da decisão do presidente do STJ, porém, o TRE-RJ confirmou outra condenação de Garotinho, em caso relativo às eleições de 2016, por ter comandado um esquema de compra de votos em Campos dos Goytacazes, seu berço eleitoral, por meio do programa assistencial "Cheque Cidadão". Naquele ano, o ex-governador era secretário municipal de governo, durante o mandato da esposa como prefeita.
Com a revelação do caso e a prisão de outra secretária, Ana Alice Ribeiro, o governista Dr. Chicão, primo de Garotinho e então vice-prefeito de Rosinha, acabou perdendo no primeiro turno a eleição local para o candidato de oposição à família, Rafael Diniz (PPS), que interrompeu um período de oito anos do clã no poder, depois retomado em 2020 com a vitória do filho do patriarca, Wladimir Garotinho.
Pouco mais de um mês depois, em 16 de novembro, o ex-governador foi preso preventivamente e a cena de seu esperneio enquanto era transferido em uma maca repercutiu pelo país. O TSE revogou a prisão no dia 24 do mesmo mês, impondo fiança de R$ 88 mil e uma série de restrições.
Anthony Garotinho ainda foi alvo de dois mandados de prisão em 2017, sendo o primeiro por comandar um grupo que estaria obstruindo as investigações da Operação Chequinho, mediante ameaças a testemunhas e destruição de provas. O mesmo juiz local que decretou essa prisão domiciliar em setembro condenou o ex-governador, em primeira instância, a 9 anos e 11 meses em regime fechado pela compra de votos.
A condenação pelo TRE-RJ, agora confirmada, veio em março de 2021, quando o colegiado do tribunal de segunda instância, por unanimidade, elevou a pena fixada pela Justiça Eleitoral em Campos para 13 anos e 9 meses de prisão por corrupção eleitoral, associação criminosa, supressão de documento público e coação no curso do processo.
Com a confirmação, segue pendente a elegibilidade de Garotinho, hoje pré-candidato ao governo do Rio, embora apareça apenas em terceiro lugar nas pesquisas, com 7% das intenções de voto, bem atrás de Marcelo Freixo e Cláudio Castro, que têm mais de 20%.
A Lei da Ficha Limpa torna inelegível por 8 anos os condenados em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, como o TRE-RJ.
A assessoria do ex-governador alegou que a decisão do tribunal "não tem validade, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal, instância superior da Justiça brasileira, já anulou toda a Operação Chequinho numa ação julgada anteriormente". A rigor, a decisão do TRE-RJ tem validade, ao menos, até que o STF concretize a sua anulação.
Em março, o ministro Ricardo Lewandowski acatou recurso de Thiago Ferrugem e anulou provas da Operação Chequinho obtidas em busca e apreensão e a sentença contra o ex-vereador, também condenado pelo TRE-RJ por participação no mesmo esquema de compra de votos.
Lewandowski ainda não se manifestou sobre o pedido feito pela defesa de Garotinho para estender ao ex-governador os efeitos da decisão favorável a Ferrugem.
Em 1º de julho de 2022, a Segunda Turma do Supremo formou maioria para manter a liminar do ministro neste caso, mas a proclamação do resultado do julgamento em plenário virtual (sem debate público) está marcada somente para o próximo dia 5 de agosto. A tendência é que o benefício seja estendido a Garotinho logo em seguida, garantindo seu direito de disputar a eleição.
III.
Lewandowski já tem um histórico de decisões favoráveis ao ex-governador.
Em 2 de outubro de 2018, em outro caso, o ministro determinou que Garotinho não poderia ser preso antes de esgotar todas as possibilidades de recurso à Justiça ou até depois que a Corte analisasse ações sobre prisão após condenação em segunda instância - medida combatida por Lewandowski, mas autorizada pela jurisprudência então em vigor, estabelecida em 2016 pelo próprio STF.
O ex-governador havia sido condenado pelo TRF-2 a 4 anos e 6 meses de prisão no regime semiaberto por formação de quadrilha armada. O esquema envolveu delegados acusados de receber propina para facilitar a exploração de jogos de azar no Rio.
Assim como Marco Aurélio Mello no caso do traficante Rabicó, foragido até hoje, Lewandowski usava decisões monocráticas para liberar da prisão condenados em segunda instância, como Garotinho, fazendo pressão para que o tema fosse rediscutido em plenário, como veio a ocorrer em novembro de 2019, resultando na soltura de Lula.
Assim como ocorreu com o petista, o ex-governador também acabou sendo beneficiado pela prescrição. Sua punibilidade por formação de quadrilha foi extinta pela então presidente do STJ, Laurita Vaz, para quem o TRF-2 não fundamentou devidamente o aumento da pena de Garotinho, fixada em dois anos e seis meses na primeira instância.
Ela então a reduziu para três anos e seis meses e, considerando a sentença original de 27 de agosto de 2010 e o prazo prescricional de oito anos para penas menores de quatro anos, declarou que o caso já estava prescrito quando o TRF-2 julgou a apelação em 4 de setembro de 2018, uma única semana após o tempo regulamentar.
Isso que é (para não dizer manobra) escapar por um triz.
IV.
Dois episódios emblemáticos também marcaram o julgamento relativo à Operação Chequinho na Segunda Turma do Supremo:
1) A validade seletiva
Lewandowski anulou as provas obtidas pela Polícia Federal em um computador apreendido na Prefeitura de Campos por falta de perícia para garantir sua validade.
Sem brincadeira. Vou até reproduzir trechos da liminar de março:
Como se nota, à míngua da realização de perícia no computador (...) de onde foram extraídos os dados impugnados, constata-se facilmente que não é possível assegurar, com segurança e de forma indene de dúvida, a autenticidade dos elementos informativos coligidos por meio de um pen drive.
Evidentemente também não é possível garantir a idoneidade da fonte dos dados ou a cadeia de custódia, uma vez que, conforme explicitado pelas instituições judiciais de origem, não houve a preservação do ambiente original para perícia, impedindo a realização de contraprova, o que malfere as citadas regras sobre a cadeia de custódia bem como os princípios do contraditório (art. 5 º, LV, CF), do devido processo legal (art. 5º LVI, CF) e, por consequência, da inadmissibilidade das provas ilícitas (art. 5º, LIV).
Verifica-se, portanto, que a higidez técnica de parcela dos elementos probatórios obtidos pela acusação, utilizados para ancorar o decreto condenatório, encontra-se comprometida."
Segundo Lewandowski, sem os procedimentos que visam à "preservação da integridade da prova colhida" e à "verificação de sua autenticidade", "constata-se que parte do material que fundamenta a condenação do recorrente está tisnado de irregularidade".
Este é o mesmo ministro do STF indicado por Lula que, referindo-se a mensagens obtidas por hackers e usadas contra a Lava Jato, afirmou que as provas "podem ser ilícitas, mas, enfim, foram amplamente veiculadas e não foram contestadas".
A confissão de Lewandowski, analisada no meu artigo "Lava Jato x Vaza Jato", surgiu em embate com Luís Roberto Barroso, que defendeu a nulidade jurídica das provas, seguindo relatório da Polícia Federal e parecer do Ministério Público Federal, segundo os quais não há como comprovar a autenticidade e a integridade do material roubado.
Lewandowski só sente falta de validação quando as provas são coletadas por policiais e contra político. Se são roubadas por criminosos e a favor de seu padrinho, aí elas valem, no mínimo, como "reforços argumentativos", mesmo rejeitadas por órgãos competentes.
2) A mudança decisiva
Até a tarde de quinta-feira, 30 de junho de 2022, o placar do julgamento da Segunda Turma no site do STF aparecia 2 a 2, com Gilmar Mendes seguindo Lewandowski, enquanto o ministro Edson Fachin abria divergência, acompanhado de Kassio Nunes Marques, para manter a validade das provas, como registrou a Folha em 1º de julho.
"Restava apenas o voto de André Mendonça, que havia pedido vista.
Mendonça apresentou na quinta seu voto, acompanhando Fachin, o que tornaria Garotinho inelegível. Contudo, o posicionamento de Kassio foi retirado do ar. No início da tarde desta sexta, o ministro reapareceu no placar acompanhando o relator, definindo a anulação das provas.
A assessoria de imprensa do STF afirmou que ele não mudou seu voto. Disse que seu posicionamento foi lançado de forma equivocada pelo sistema, mas que o documento anexado por Kassio já defendia a anulação das provas."
Kassio Nunes Marques foi o primeiro indicado de Jair Bolsonaro ao STF.
Desde o começo do ano, Garotinho, embora apoiador de Ciro Gomes, ensaiou aproximação com o presidente.
Em fevereiro, o ex-governador, sua esposa e seus filhos receberam Bolsonaro e o filho Flávio em seu reduto no Norte do Rio, em lançamento da segunda usina termelétrica do Porto do Açu. Garotinho posou para fotos ao lado de Bolsonaro, a quem entregou uma "cesta de doces típicos", e foi elogiado pelo então ministro Tarcísio de Freitas.
No dia 12 daquele mês, Garotinho entrevistou Bolsonaro em seu programa de rádio, durante o qual ambos atacaram a TV Globo, mostrando um ressentimento em comum. A participação do presidente foi articulada por Clarissa Garotinho, filha do ex-governador que vem atacando a oposição ao governo federal e disputando com Romário o apoio de Bolsonaro para a própria eleição ao Senado pelo Rio.
Mas ninguém se interessou, claro, em investigar a mudança de voto de Nunes Marques, decisiva para abrir caminho à anulação da condenação de Garotinho, curiosamente confirmada pelo TRE-RJ no mesmo dia em que o presidente participava no Congresso, ao lado de Humberto Martins, da promulgação da PEC do Desespero, ou seja, da legalização da compra de votos.
O Brasil é uma tragicomédia de trapaças, compadrios, escambos e impunidade.
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