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Felipe Moura Brasil

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Breve história do bolsoguedismo

Colunista do UOL

02/08/2022 14h00

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1.

Em 21 de setembro de 2017, mais de um ano antes das eleições vencidas por Jair Bolsonaro em 2018, apontei seu histórico de posições estatistas, mais próximas de Lula, em contraste com as bandeiras liberais. Reproduzo um trecho do artigo que escrevi na newsletter de O Antagonista, site onde eu trabalhava na ocasião:

"Bolsonaro, em 2005, no Programa do Jô, criticou FHC da seguinte maneira:

'Barbaridade é privatizar, por exemplo, a Vale do Rio Doce como ele fez; é privatizar telecomunicações; é entregar nossas reservas petrolíferas para o capital externo. E a hora que você conseguir a autossuficiência do petróleo aqui, essas empresas de fora vão continuar tirando petróleo a 7 dólares e vendendo a 60. O lucro é deles!'

Em seu discurso nacionalista contra as privatizações ocorridas no governo FHC - incluindo a da Telebras, que acabou por popularizar o acesso à telefonia móvel -, Bolsonaro soava como Lula; e ainda acrescentava em tom irônico:

'Num país sério, o que ele [FHC] fez com as privatizações aqui, com toda a certeza que ele iria para aquele lugar lá' - no caso, o paredão de fuzilamento, amenizado pelo deputado como força de expressão.

Em 2017, porém, Bolsonaro respondeu a Bruno Dornelles se manteria o Estado grande

'Quando você fala em período militar, era uma outra época, completamente diferente. E muitas estatais foram criadas e funcionaram naquele período. Tinha muitos coronéis estatistas, sim, mas a corrupção praticamente inexistia. Hoje em dia, os tempos mudaram, você tem que partir para uma privatização. Tem estatais que não tem nem que ser privatizadas, tem que ser extintas. Se eu não me engano, são 148 estatais no Brasil, que servem apenas de cabide de emprego. Então isso tem que ser mudado. Afinal de contas, o Estado tem que interferir o mínimo possível na economia.'

Os militares criaram 47 estatais no Brasil; e o PT, 43, quando já havia cerca de 100. O capitão da reserva distingue os dois casos, mas, reconhecendo que evoluiu em alguns pontos, adota hoje um discurso bem mais liberal que o de doze anos atrás, embora ainda com ressalvas sobre setores 'estratégicos', como o de energia, e até no caso da Petrobras, que, segundo ele, precisaria ser recuperada primeiro."

Eu então cobrava de Bolsonaro, assim como de João Doria (que assumia a voz do Estado controlador ao cobrar de Netflix e Spotify o pagamento de impostos sem repasse da carga aos consumidores), "exemplos práticos", se quisessem "realmente se contrapor ao estatismo esquerdista", já que as "contradições de ambos" faziam "permanecer no ar" a dúvida sobre "até onde vai" o suposto "liberalismo econômico de cada um".

2.

Paulo Guedes ainda não havia entrado para o time de Bolsonaro. O "namoro" começou dois meses depois, em novembro, por intermédio da então ativista Bia Kicis e do empresário Winston Ling, e virou "noivado" quando o apresentador Luciano Huck, com quem o economista conversava, anunciou, no dia 27, sua desistência da disputa eleitoral. Em julho de 2018, Bolsonaro estreou o termo 'Posto Ipiranga' como apelido de Guedes, apontado como dono de todas as respostas, conforme o comercial da marca.

Em 23 de agosto, porém, ele não tinha uma resposta precisa sobre o quanto do liberalismo econômico absorvido em sua formação acadêmica nos Estados Unidos havia entrado na cabeça do cabeça do então candidato. "Não sabemos o quanto disso vai se converter em ideias liberais", admitiu Guedes em sabatina na Globonews.

"O economista vai propor coisas duras, o presidente vai dar uma amaciada, o Congresso vai dar outra amaciada, e vai sair de lá um negócio que não é o que o economista quis, mas também não é o que a turma queria", disse ele, usando a terceira pessoa.

Em 9 de setembro, a avaliação comum já era, como registrou a Folha, que Guedes servia a Bolsonaro como uma 'Carta aos Brasileiros' em carne e osso, em referência ao documento usado pelo então candidato Lula (PT) para acalmar os mercados em 2002.

No dia 21 daquele mês, exatamente um ano após o meu artigo, quando o então candidato do PSL já liderava as pesquisas, o jornal publicou a matéria "Como deputado, Bolsonaro defende privilégios e eleva gasto público", cujo subtítulo era: "Análise de votos em 27 anos no Congresso mostra prática oposta a discurso liberal de campanha".

Reproduzo um trecho:

"Bolsonaro votou contra as principais tentativas de reforma da Previdência e contra as grandes privatizações, como o fim do monopólio do petróleo e o das telecomunicações nos anos 1990.

Ao mesmo tempo, apoiou benefícios aos servidores, isenções fiscais a setores específicos e medidas que elevaram o gasto público, mesmo em períodos de restrição orçamentária.

Quando questionado sobre o assunto, o candidato, que é líder nas pesquisas de intenção de voto, costuma responder que sua fama de estatizante vem de sua oposição ao Plano Real, que estabilizou a moeda em 1994.

Diz ainda que se converteu de vez após conhecer seu guru, Paulo Guedes, economista egresso da Universidade de Chicago, reduto liberal.

Mas seu histórico de votos, até mesmo mais recente, prova que não é bem assim.

Mesmo no governo Michel Temer, quando suas ambições presidenciais já estavam claras, suas posições econômicas continuaram ambíguas."

3.

O lado estatista e corporativista dessa ambiguidade, que sempre havia sido o mais forte, quando não o único, acabou prevalecendo também no governo Bolsonaro, turbinado ainda pela necessidade do presidente de comprar apoio parlamentar, com a distribuição de cargos na máquina pública ao Centrão, para evitar um impeachment que deixasse sua família vulnerável à prisão por desvios de dinheiro do povo em gabinetes passados - possibilidade que atormenta o patriarca desde o avanço das investigações sobre a movimentação bancária atípica de Fabrício Queiroz, revelada após a eleição de 2018.

O que Guedes previu como "amaciada" se consolidou, na prática e com a cumplicidade dele, como o abandono da pauta liberal, consolidando o "coach da Faria Lima" no papel de "legitimador econômico da imoralidade política", como comentei em vídeo de 7 de julho de 2020. Também escrevi diversos artigos sobre o tema, sendo "A reforma moral" o mais emblemático deles, publicado em 14 de agosto de 2020, logo após a saída de Salim Mattar e Paulo Uebel das secretarias de Desestatização e Desburocratização do próprio Ministério da Economia. A continuação veio com o artigo "Adam Smith contra Lula e Bolsonaro", publicado em 16 de janeiro de 2022 (pouco depois de Augusto Aras, indicado pelo presidente, ter arquivado - em dezembro de 2021 - uma apuração preliminar sobre a offshore mantida por familiares do ministro, que eu havia criticado aqui e aqui.)

Em 10 de junho, ainda lamentei, já no título de outro artigo, "A falta de uma oposição liberal a Bolsonaro e Guedes", citando, inclusive, a dificuldade que "a possível e tardia chapa" de Simone Tebet (MDB-MS), agora com a tucana Mara Gabrilli como vice no lugar de Tasso Jereissati, teria para "convencer o eleitorado de sua viabilidade em tempo exíguo, construindo ao mesmo tempo identidade e discurso capazes de atender a essa demanda reprimida, sem afastar o restante dos eleitores potenciais".

4.

As posições de Elena Landau, que vem criticando o desmonte das regras democráticas e do arcabouço fiscal com a transformação de PECs em instrumentos triviais como medidas provisórias, ilustram a tese.

Para a conselheira econômica de Tebet, Guedes "destruiu a imagem do liberalismo" no país. "Ele não tem nada de liberal, nem sequer na agenda econômica. Ele não privatizou, não fez abertura comercial, não capacitou mão de obra, não avançou nas questões de integração de tecnologia nem nos acordos comerciais internacionais", disse a economista ao Metrópoles.

O ministro, segundo ela, "criou um grande problema para os liberais brasileiros de verdade, porque ele vendeu uma ideia de agenda liberal totalmente dissociada da agenda liberal por inteiro. É impossível acreditar que uma pessoa que se diz liberal participaria de um governo que defende a tortura, como fez Bolsonaro. Isso não existe."

A defesa retórica da tortura imposta no regime militar foi relativizada em 2018 pelo próprio eleitorado, mais incomodado com as práticas contemporâneas de corrupção petista em período de crise, de modo que, em 2022, pesa mais contra os liberais brasileiros de verdade a adesão incondicional de Guedes a um projeto reacionário, populista e patrimonialista de poder, desprezando o arcabouço moral do liberalismo e curvando-se com frequência ao avesso da doutrina a fim de permanecer no cargo.

O presidente, para se distanciar dos impactos impopulares dos reajustes no preço dos combustíveis, chegou a dizer que os lucros da Petrobras são um "crime inadmissível" e um "estupro". Como um subordinado sempre disposto a varrer parte da sujeira deixada pelo chefe, o ministro, agora, corre atrás desses mesmos dividendos, antecipados pela estatal, para cobrir o rombo nas contas públicas provocado pela PEC do Desespero.

No "casamento" com Bolsonaro, Guedes só pensa em renovar os votos.