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Fernanda Magnotta

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Tema espinhoso nos EUA, imigração será fonte de contradições de Biden

Kamala Harris, vice-presidente dos Estados Unidos - Getty Images
Kamala Harris, vice-presidente dos Estados Unidos Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

10/06/2021 04h00

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Nos últimos dias, acompanhamos a primeira viagem internacional de Kamala Harris, vice-presidente dos Estados Unidos. Em passagem pela América Central, ela, que foi designada para acompanhar a pauta imigratória na região, estampou jornais de diversos países depois de ter sido emblemática ao dizer aos que pretendem arriscar-se rumo ao Norte:

"Não venham. Os Estados Unidos irão continuar a aplicar nossas leis e proteger nossas fronteiras. Se você vier, será enviado de volta". A fala de Harris ocorreu ao mesmo tempo em que o Departamento de Justiça do país anunciou a criação de uma força-tarefa para combater o tráfico de pessoas vindas de El Salvador, Guatemala, Honduras e México.

Essas ações aqueceram o debate sobre a capacidade de o governo democrata distanciar-se de políticas da gestão anterior nessa seara. O tema da imigração é delicado, espinhoso e mobiliza interesses materiais e ideacionais nos Estados Unidos, o que torna a questão suscetível a contradições e à falta de consensos.

Enquanto esteve no poder, Donald Trump fez da defesa de fronteiras um de seus motes políticos mais emblemáticos e defendeu uma política de "tolerância zero" para lidar com imigrantes ilegais. Depois de enfrentar dificuldades na liberação de verbas para a construção do prometido muro na divisa com o México, Trump chegou a declarar emergência nacional como forma de driblar o sistema para obter financiamento para o projeto sem depender do Congresso norte-americano.

Além disso, assinou ordens executivas impedindo as chamadas "cidades-santuário" de receberem subsídios federais e, na mesma linha, enviou mais de 5 mil soldados para endurecer a fronteira sul dos Estados Unidos. As patrulhas levaram à separação de mais de 2.600 crianças de seus pais, o que causou grande polêmica naquele momento.

O governo republicano também promoveu mudanças nas regras de asilo e anunciou um plano para reduzir as admissões de refugiados a um máximo de 15.000 pessoas em 2021, o nível mais baixo em quatro décadas. Ademais, usou tarifas para pressionar países da região e avançou com a dissolução do DACA, (em inglês, o "Deferred Action for Childhood Arrivals"), implementado durante o governo Obama.

Durante a campanha eleitoral, Biden criticou duramente as políticas de seu antecessor. Prometeu mudanças significativas e, com isso, criou esperança sobre o que poderia promover em termos de avanços nesse campo.

Já empossado, o democrata reverteu a construção do muro na fronteira com o México, bem como a proibição de entrada de cidadãos de países de maioria muçulmana decretada por Trump. Defendeu o fortalecimento do DACA, prorrogou adiamentos de deportação e concedeu autorizações de trabalho para refugiados. Também nomeou Alejandro Mayorkas, de origem cubana, para chefiar o Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos.

Biden revogou a ordem executiva que levava à separação de famílias na fronteira, assinou um memorando com vistas a defender os direitos de refugiados e requerentes de asilo da comunidade LGBTQIA+ e, no contexto da pandemia de covid-19, acabou com certas restrições de emissão de vistos de imigrantes.

Apesar disso, tanto a questão do refúgio quanto as ações para lidar com as chamadas "caravanas" vindas da América Central têm feito do governo Biden bastante vulnerável. Se, no discurso, o presidente reafirma o interesse em admitir um maior número de refugiados, na prática, os esforços para a ampliação do programa específico que rege essas relações ainda não avançou significativamente.

O mesmo ocorre com os projetos que visam facilitar o acesso à cidadania norte-americana a milhões de imigrantes não documentados. Enquanto isso, as deportações seguem ocorrendo (inclusive de brasileiros — foram 130 só em maio desse ano).

Diante do maior fluxo de migrantes que chega aos Estados Unidos em duas décadas, Biden convive ainda com denúncias envolvendo o volume de crianças desacompanhadas que ficam em centros de detenção por prazo superior ao permitido por lei e tem de lidar também com críticas da imprensa, que alega estar sendo cerceada na cobertura da ação das patrulhas na fronteira com o México.

Por fim, embora a Câmara dos Representantes tenha aprovado recentemente duas leis de imigração, incluindo a ampliação de proteção para os chamados "dreamers", jovens que entraram ilegalmente nos Estados Unidos como menores, a expectativa é que os projetos sejam barrados no Senado - o que não é boa notícia para o presidente.

O cenário é, do ponto de vista político, o que os norte-americanos classificariam como um "deadlock": um impasse. Para conseguir avanços com os republicanos, sobretudo no Senado, Biden terá que fazer concessões, já que a maioria é mais conservadora nessa matéria e dificultará uma reforma da imigração como deseja o presidente.

Ao mesmo tempo em que isso implicará tensões com a ala mais progressista do partido democrata, o cenário tampouco é reconfortante caso Biden acatasse integralmente a demanda desse grupo, pois, ao acenar para ele, o presidente gera expectativas que talvez não seja capaz de cumprir. No discurso ao Congresso, por ocasião dos cem primeiros dias no poder, já foi possível notar ativistas do tema usando camisetas que estampavam "nada mudou" e "100 dias de promessas vazias".

O resultado, na prática, é que Biden terá suas contradições expostas tanto por opositores quando por aliados e tenderá a ser tratado como "mais do mesmo" no campo da imigração. Todos os governos possuem um "calcanhar de Aquiles". Esse poderá ser o de Biden.