Fernanda Magnotta

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Opinião

Ataque terrorista à Rússia abre espaço para nova guerra de narrativas

As equipes de salvamento mal tinham finalizado o seu trabalho nos arredores de Moscou, na última sexta-feira, e já começava, dentro e fora da Rússia, mais uma batalha na guerra de informação envolvendo o país, dessa vez sobre o ataque à sala de concertos de Crocus City, onde mais de 130 pessoas morreram e outras 107 ficaram feridas.

Embora a autoria do ataque tenha sido rapidamente reivindicada pelo grupo terrorista ISIS (Estado Islâmico), multiplicaram-se, em pouco tempo, teorias de que esse poderia se tratar de um "inside job do próprio governo Putin" ou de uma articulação ucraniana.

No primeiro caso, a tese é de que seria o pretexto ideal para Putin intensificar a cruzada contra outros atores regionais e sobre a Ucrânia e justificar uma incursão de segurança ainda mais "linha-dura". No segundo caso, a hipótese é de que seria uma nova forma velada de ataques vindos de Kiev para vulnerabilizar o governo russo poucos dias após sua reeleição, sem gerar retaliações por parte da comunidade internacional, já que atacar civis é vetado pelas normas de governança mesmo na guerra e, portanto, não poderia ser feito "às claras".

Não há, até o momento, dados ou fatos que comprovem nenhuma dessas versões. Poderiam ser apenas "teorias da conspiração", como sempre houve, mas, no mundo em que vivemos, parece mais complexo do que isso: são frutos da desconfiança das pessoas nas próprias versões oficiais que se apresentam ao público e da falta de credibilidade das mensagens transmitidas pelas autoridades existentes.

Sabemos que narrativas são formas de descrever e explicar o mundo: tem a ver com construção de roteiros que incluem eventos centrais, atribuição de papeis e encadeamentos de fatos que atribuem significados aos acontecimentos, bem como certa lógica de causalidade.

É muito razoável que tenha sido mesmo um ataque perpetrado pelo ISIS. O Estado Islâmico e sua facção ISIS-K expressaram repetidamente o desejo de atacar a Rússia, motivados pela intervenção militar russa no Afeganistão nos anos 1980, a repressão a comunidades muçulmanas, especialmente no norte do Cáucaso, e o apoio da Rússia ao governo de Bashar al-Assad na Síria. Entre 2016 e 2019, o ISIS executou vários ataques na Rússia, e outras tentativas foram frustradas de 2021 a 2023. Após a Rússia intervir na Síria em 2015, o grupo sofreu perdas significativas de território, mas continuou visando a Rússia, incluindo não apenas ataques específicos, mas o recrutamento de combatentes no país e em diversas ex-repúblicas soviéticas.

Apesar disso, os próprios personagens centrais dessa história parecem desejar enredos alternativos. Putin não mencionou o ISIS em seu discurso à nação e ainda parece estar buscando um vínculo ucraniano para os ataques. O faz por razões estratégicas e políticas. Primeiro, porque poderia servir para justificar novas ações militares no contexto da guerra, fortalecendo a narrativa de que a Rússia está se defendendo contra agressões externas. Segundo, porque ao deslocar a culpa para a Ucrânia poderia enfraquecer o apoio internacional ao país, retratando-o como uma ameaça à segurança coletiva. Terceiro, porque essa tática também poderia ser usada internamente para unificar o apoio público em torno de seu governo, ao enfatizar a necessidade de proteção e estabilidade diante de supostas "novas ameaças".

No campo da política internacional, de novo, estamos diante de uma situação em que o que importa efetivamente é como os personagens constroem histórias sobre si mesmos e sobre os outros. De que modo criam enredos e promovem interpretações. Já que na era da pós-verdade "tudo pode ser", vivemos mergulhados, intencionalmente pelas lideranças políticas, na permanente disputa entre a realidade e a ficção. Em que acreditar, no fim do dia?

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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