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Fernanda Magnotta

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

EUA: Suspensão do direito ao aborto reforça barganha política e polarização

Ativistas pró-aborto em frente a Suprema Corte Washington em vigília na quinta-feira - Nathan Howard/Getty Images
Ativistas pró-aborto em frente a Suprema Corte Washington em vigília na quinta-feira Imagem: Nathan Howard/Getty Images

Colunista do UOL

24/06/2022 16h19

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O assunto que mais causa comoção hoje, nos Estados Unidos, tem a ver com a suspensão do aborto enquanto um direito constitucional pela Suprema Corte do país. Isso ocorre após quase 50 anos de que uma jurisprudência foi conquistada pelo famoso caso Roe versus Wade, de 1973.

Com isso, os estados norte-americanos retomam autonomia para legislar sobre o tema, o que deve levar ao menos metade deles a impor restrições e novas regras para casos em que o aborto pode ou não ser realizado.

Para além das relevantes questões de saúde pública envolvidas nesse tipo de movimento e de todo o debate acerca dos direitos reprodutivos e da mulher, a deliberação da Suprema Corte também é importante por outras razões:

  1. Ela reforça que a Justiça não é necessariamente objetiva, nem puramente técnica, mas também --e principalmente-- um espaço de barganha política. Essa decisão ocorre após o Poder Judiciário ter ampliado significativamente a maioria de juízes conservadores ao longo dos últimos anos. Composta por nove membros indicados por presidentes conforme vacância, a Suprema Corte tornou-se um campo de ativa disputa, envolvendo não só aspectos ideológicos elementares, mas também um terreno de competição partidária direta.
  2. Ela é divulgada em um timing muito específico: no dia seguinte em que Biden tem uma vitória histórica no Congresso no que tange o controle de armas. O Senado dos Estados Unidos acaba de aprovar, com apoio bipartidário, um conjunto de restrições à venda de armas no país, além de direcionar verbas para programas voltados à saúde mental e segurança escolar. Trata-se de uma promessa central da campanha de Biden se cumprindo. Boa notícia para os democratas, mas uma notícia incômoda e particularmente sensível para boa parte dos republicanos. A decisão sobre o aborto chega, portanto, como uma coincidência reconfortante e conveniente à oposição.
  3. Em ano de estratégicas eleições legislativas, em que tudo indica que o voto será pautado principalmente pelos efeitos da crise econômica do país, os sinais são de que as lideranças tentam retomar o controlar da agenda e definir posições a partir da pauta dos costumes. A inflação bate recorde nos Estados Unidos. Dívida, déficit, desigualdade, desindustrialização, perda de renda, de capacidade de consumo e investimento. Tudo isso compõe uma realidade difícil de contornar há décadas e que, no mundo pós-covid e do conflito no leste europeu, afeta mais fortemente o cotidiano das famílias norte-americanas. Democratas e republicanos têm tido dificuldades em lidar com isso.

Em um país socialmente fraturado, é difícil dizer se estamos, de fato, diante de uma tentativa de discutir substancialmente um tema multifacetado e que requer consulta especializada —como é o caso do aborto— ou se trata-se apenas de outra onda de incentivo às polarizações como forma de tentar acionar as paixões de um eleitorado com mira de curto prazo.

Engana-se quem olha para essa decisão somente a partir das próprias convicções morais. Esse tipo de discussão costuma ser bem mais complicada do que isso.