O odor da fúria
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Incêndios em Santiago, Quito, Barcelona ou Paris. Milhares de pessoas tomando as ruas de Londres, Bagdad, o centro de Argel ou as praças de Hong Kong.
Visualmente, os manifestantes não se parecem. Uns são brancos de olhos azuis. Outros, indígenas, árabes ou asiáticos. Mas em castelhano, em inglês, em árabe ou em catalão, surpreende a semelhança dos cartazes, das palavras de ordem.
Acima de tudo, surpreende o fato de que todos esses locais estarem vivenciando o mesmo fenômeno: a fúria de seus cidadãos contra as autoridades, algumas delas legitimamente estabelecidas.
Nos últimos dias e semanas, protestos se proliferaram pelo mundo. Não foi algo organizado na Internet ou no Whatsapp. Nem convocado por alguma adolescente escandinava. Certamente, cada uma dessas cidades tem sua história, seu motivo para protestar, seu jogo de poder e manipulação nos bastidores de cada fogo.
Mas seja qual for a base da eclosão quase simultânea dessa ira, está na hora de se perguntar: o que tem levado milhares de pessoas a tomar as ruas de forma, algumas de maneira tão violenta?
Uma pista pode estar na suspeita cada vez mais clara de que ainda estamos vivendo as consequências da pior crise do capitalismo e o colapso do sistema financeiro de 2008. Unidos, os países do G-20 estabeleceram um plano e resgataram a economia internacional. Para isso, injetaram ao longo de anos um total de US$ 10 trilhões.
Governos explicaram aos seus cidadãos que era o momento de fazer esforços. De trabalhar mais, de pagar mais impostos, de reduzir os sonhos e de adiar de forma indefinida planos. A promessa: o resultado seria positivo para todos.
Mas, uma década depois, a história mostra que não foi bem assim. Os banqueiros voltaram a ganhar, os bancos voltaram a ter lucros, a elite econômica voltou a ver resultados e as bolsas voltaram a festejar.
Enquanto isso, a desigualdade social explodiu. Os ricos ficaram mais ricos. E os pobres foram avisados de que terão de aguardar gerações para subir na escala social.
De forma cada vez mais constante, instituições que por anos monitoraram a evolução econômica do mundo estão chegando à constatação de que o resgate organizado pelos bancos centrais aprofundou o mal-estar nas democracias. A última a chegar a essa conclusão não foi o Foro de São Paulo. Mas o oráculo do capitalismo: o Fórum Econômico Mundial que, a cada ano, reúne a elite mundial em Davos.
Em sucessivas eleições, a esperança era de que o novo grupo no poder desse um basta nessa trajetória. Todos fracassaram: esquerda e direita.
Agora, governos descobrem que o copo transbordou. Algumas dessas autoridades sabem que a fatiga imposta sobre os cidadãos é uma das maiores ameaças em anos. Outros, parecem que ainda não despertaram. No Chile, o presidente Sebastian Pinera foi flagrado numa pizzaria, enquanto um estado de emergência era decretado. A surdez não será perdoada.
No Chile ou na França, na Espanha ou no Equador, o que está em jogo não é a elevação de um ou outro imposto e nem a sobrevivência de um ou outro governo.
Denunciar a suposta irracionalidade da violência - certamente condenável - de grupos mais radicais pode ajudar a apagar o fogo. Mas o odor da fúria continuará. E essa fúria manda um recado explícito: o atual sistema não é sustentável.
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