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Jamil Chade

Populistas e regimes autocráticos usam vírus para ampliar poderes e censura

Viktor Orban, primeiro-ministro da Hungria - ATTILA KISBENEDEK/AFP
Viktor Orban, primeiro-ministro da Hungria Imagem: ATTILA KISBENEDEK/AFP

Colunista do UOL

24/03/2020 04h00

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O governo húngaro de Viktor Orban pediu ao parlamento autorização para que possa suspender leis e governar por decretos, numa ampliação do estado de emergência e sem data para acabar. O primeiro-ministro Viktor Orban, no poder desde 2010, quer que o Legislativo aprove uma lei que prolongaria indefinidamente o estado de crise e que permita a prisão para quem difundir informações falsas.

No fundo, a nova legislação dará poderes para que seja o próprio Orban quem decida quando a pandemia irá terminar. Pela proposta do húngaro, mesmo que o Legislativo não realize uma só sessão em todo o ano, o país teria seu futuro determinado por decretos especiais emitidos pelo Executivo. Também fica proibido qualquer iniciativa de referendo ou eleição.

Numa primeira tentativa de fazer a lei se aprovada às pressas, na segunda-feira, a proposta não conseguiu atingir o número de apoios necessários. Ainda que em um número inferior, a oposição conseguiu impedir que a lei obtivesse a ampla maioria para sua aprovação.

Mas o governo aposta em uma nova apresentação do projeto dentro de prazos regulares para os próximos dias, o que permitirá que a mesma lei possa ser considerada.

A manobra adotada pelo governo Orban não ocorre de forma isolada e tem sido avaliada como um exemplo de como governos de extrema-direita, autocráticos e populistas estão usando a crise para ampliar seus poderes e censurar a imprensa, um velho sonho de governos como o de Budapeste.

Antes mesmo de a crise eclodir, o primeiro-ministro havia relacionado a doença à imigração, o que levou entidades como a Human Rights Watch a denunciar a tentativa de transformar o vírus em uma arma política contra estrangeiros. Agora, sua prorrogação do estado de crise por "tempo indeterminado" é visto com temor entre a oposição.

"Esses são sinais preocupantes", afirmou Staffan Lindberg, pesquisador da Universidade de Gotemburgo e que realiza a cada ano um levantamento sobre a saúde das democracias pelo mundo.

Entre líderes de partidos de extrema-direita na Europa, não faltaram aqueles que, diante do vírus, se apressaram a declarar que suas teses nacionalistas estavam vingando. Pela primeira vez, em tempos de paz, a Europa fechou suas fronteiras, uma bandeira de populistas para "resgatar" a soberania nacional em diversos temas.

"A necessidade de fronteiras está sendo justificada pela pandemia", afirmou Laura Huhtasaari, eurodeputada pelo Partido Nacionalista-Populista Finlandês. "O globalismo está entrando em colapso", afirmou.

Nigel Farage, porta-voz da campanha do Brexit, também se apressou em decretar o fim do projeto europeu. "Agora somos todos nacionalistas", decretou, num tom de que o mundo reconheceu suas ideias. Segundo ele, a "demonstração do conceito de solidariedade, defendido pela UE e seus amigos globalistas, agora não servem para nada".

O uso do coronavírus, de fato, tem sido alvo de avaliações entre os especialistas em direitos humanos da ONU. Um grupo de relatores da entidade emitiu um alerta de que a emergência não poderia ser usada para fins políticos ou para desmontar controles democráticos.

"Embora reconhecendo a gravidade da atual crise de saúde e reconhecendo que o uso de poderes de emergência é permitido pelo direito internacional em resposta a ameaças significativas, lembramos urgentemente aos Estados que qualquer resposta de emergência ao coronavírus deve ser proporcional, necessária e não discriminatória", alertaram, em carta.

"As declarações de emergência baseadas no surto de Covid-19 não devem ser usadas como base para atingir determinados grupos, minorias ou indivíduos", disse a declaração. "Não deve funcionar como uma cobertura para ações repressivas sob o pretexto de proteger a saúde nem deve ser usada para silenciar o trabalho dos defensores dos direitos humanos", completaram.

O alerta foi emitido depois que governos, em diferentes partes do mundo, deram sinais que iam na mesma direção do governo de Orban. Nas Filipinas, o governo autoritário de Rodrigo Duterte decretou um "estado de calamidade" por seis meses e suspendeu a vida pública. O temor da oposição é de que parte dessas medidas jamais sejam retiradas, uma vez que a crise termine.

Em outros países, as medidas de confinamento também demonstraram a posição de governos em relação a algumas das liberdades individuais. Antes mesmo de declarar uma quarentena, o governo islâmico conservador na Turquia deu início às medidas fechando bibliotecas e bares. Mas permitiu que shoppings e restaurantes permaneçam abertos.

Em outros lugares, autoridades passaram a punir a imprensa que questione a veracidade das informações divulgadas pelo governo. No regime autoritário no Egito, um correspondente inglês teve sua credencial retirada depois que publicou um artigo em que apontava para estudos que questionam os reais números da doença no país. O escritório do New York Times também foi acusado de "promover dados incorretos" sobre o coronavírus.

Numa declaração, o Serviço de Informação do Estado alertou que esses jornalistas estavam atuando de "má-fé para minar os interesses egípcios".

Para a entidade Repórter Sem Fronteira, o governo do Cairo agiu de forma "desproporcional" e alertou como as autoridades locais estão impedindo que jornalistas cubram a epidemia de uma maneira objetiva.

Ainda em janeiro, a censura na China contra a imprensa e nas redes sociais ganhou novas dimensões, depois que o próprio Partido Comunista adotou uma nova orientação para combater o vírus e que incluiria medidas para "garantir a estabilidade" do país. Relatos apontam para um incremento da repressão.