Topo

Jamil Chade

Ao cortar verba para OMS, Trump transfere culpa por mortes para alvo fácil

Diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, durante entrevista coletiva em Genebra -
Diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, durante entrevista coletiva em Genebra

Colunista do UOL

15/04/2020 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

A decisão de Donald Trump de suspender os pagamentos para a OMS foi interpretada nos bastidores da diplomacia mundial como um esforço para transferir para a agência internacional a culpa pelos mortos que se acumulam nos EUA.

Na terça-feira e depois de dias de ameaças, o americano anunciou que estava suspendendo os repasses para a OMS. Os EUA são os maiores doadores para a instituição e o corte ocorre justamente quando o mundo mais precisa da agência.

Seu gesto é ainda uma sinalização clara ao resto do mundo de que não serão as organizações internacionais quem determinarão os caminhos dos governos na pandemia.

Enfraquecida, atacada, politizada, sem recursos e incapaz de ser ouvida, a OMS passou a ser um alvo fácil para líderes que buscam transferir a culpa por seus erros.

Se a OMS vinha alertando sobre os riscos do coronavírus desde janeiro, Trump e outros presidentes insistiram por meses que o vírus não era uma ameaça. Em final de janeiro, em Davos, o americano foi questionado sobre o assunto e respondeu: "está tudo controlado".

Durante aquele mês, informes de seus serviços de inteligência apontaram para os riscos de um surto de proporções inéditas e, ainda assim, ele não agiu.

Um mês depois de a OMS declarar a emergência, ele tuitou: "o coronavírus está sob controle nos EUA". Seriam necessários mais 43 dias para que ele declarasse um estado de emergência.

Durante o mês de fevereiro, mais atos negando a gravidade e insinuando que o vírus estava sendo instrumentalizado pelos democratas.

No dia 10 de fevereiro, ele previu que, com a primavera, o vírus desapareceria em abril. "Estamos em grande forma", garantiu. 18 dias depois, ele insistiu: "o coronavírus vai desaparecer. Um dia, como milagre".

Em pouco mais de três meses do surto, os americanos somaram 25 mil mortos, contra menos de 4 mil na China.

De seu lado, a OMS deu espaço para as críticas. Para garantir acesso ao território chinês, negociou cuidadosamente com Pequim a forma pela qual iria declarar a emergência global. Além disso, jamais questionou em público os números apresentados pelos chineses e nem sobre as atitudes dos chineses em censurar médicos que alertaram sobre a crise.

Apesar dos erros, a OMS passou a agir com centenas de cientistas de todo o mundo em busca de uma estratégia e uma coordenação para lidar com a crise. Nesta semana, iniciou o envio de milhões de máscaras para 120 países.

Além disso, passou a coordenar uma ação para permitir uma aceleração da produção da vacina.

Alerta

A incapacidade de a OMS em se fazer escutar não é de hoje. Em 2018, ao marcar os cem anos da gripe espanhola, seu diretor Tedros Ghebreyesus alertou que o mundo continuava "muito vulnerável" a emergências de saúde.

Ele admitia que sua entidade não estava 100% pronta para lidar com uma eventual nova pandemia e anunciou que queria criar uma força internacional de milhares de funcionários, médicos e enfermeiras que pudessem ser despachados para frear um surto caso eclodisse uma nova emergência.

"Se algo ocorrer, nenhum país pode fazer as coisas sozinho", disse. "Precisamos ter um exército de saúde para que os países com condições possam ajudar", explicou. "Uma força de reserva que possa agir, mas também treinar funcionários locais é o que eu quero implementar", insistiu.

Fracasso

Poucos meses depois, uma auditoria interna na OMS sustentava o que Tedros alertava. O documento contava o caso de uma emergência de saúde vivida pelo Iraque. O caso obrigava uma equipe internacional a ser enviada ao local para fornecer remédios e serviços de urgência à população. Para isso, o time formado pela OMS buscou parceiros locais que pudessem implementar a estratégia e fornecer os medicamentos necessários para tratar as vítimas e os pacientes, muitos deles entre a vida e a morte.

Mas, para que a operação pudesse ser iniciada diante da urgência sanitária, havia um obstáculo inesperado a ser superado: a burocracia. Entre a assinatura de acordos, a implementação e a entrega de remédios, a OMS levaria 57 dias para completar o processo. No total, a estratégia passou por 24 etapas administrativas para ser aprovada. Só então remédios puderam chegar aos mais necessitados - ou aos que ainda estavam vivos.

A conclusão era de que a agência, apesar de avanços nos últimos anos, ainda não estava preparada para fazer frente a uma eventual nova epidemia de grande proporção mundial.

O documento interno obtido pela coluna revelava pela primeira vez que a forma como a crise do surto de ebola foi tratada na África, em 2015, tinha sido um "fracasso catastrófico".

Nem a auditoria e nem os alertas de Tedros foram escutados. E, em 2020, a pandemia chegou e, com ela, as campanhas racistas e até ameaças de morte contra o etíope.

Com mais de cem mil mortos, uma economia mundial em recessão e uma explosão de pobres e desempregados, a OMS insiste que a prioridade hoje não é a de encontrar quem errou dentro do sistema.

Em Genebra, muitos sabem que, quando a pandemia acabar, perguntas incômodas serão feitas sobre o futuro da entidade, sobre a transparência na China, sobre as intenções dos americanos de dirigir a agência e sobre o que querem os países do sistema multilateral.

O próprio Tedros deixou claro que haverá uma avaliação interna profunda depois da pandemia. Antonio Guterres, secretário-geral da ONU, também sabe disso. E ambos têm plena consciência de que o futuro de suas entidades está em jogo.