Uma república profanada
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A necropolítica. No campo, na floresta, na periferia. Em nome da família, crimes são cometidos. Os coveiros de nossa política externa também já fizeram o seu trabalho, enterrando as pontes construídas em cada gesto.
Saúde? Sem pânico, nem dinheiro, nem quarentena e nem pandemia. Vai passar. De pessoa a pessoa.
Na Educação, nem pensar.
Justiça? Com limites. Abusos? Diariamente e sob os olhares de Deus.
Caçarolas, panelas, frigideiras e outros utensílios de cozinhas se fazem ouvir. Seria algum rito para espantar ecos de um passado? Cúmplices abandonam as naus em chamas, e não hesitam em continuar a explorar a ignorância alheia até mesmo quando batem a porta.
Não é apenas o gabinete que é de ódio. O discurso é repleto de morticínio. Morte de uma república profanada. Morte de poderes vulgarizados. Uma imagem destruída, ridicularizada. Um futuro sequestrado numa sucessão de sonhos afogados.
Como não pensar em Flávio Rangel e Millôr Fernandes que, em Liberdade Liberdade, reproduzem uma cena em que o discurso da morte se confronta com uma alma inconformada de Miguel de Unamuno, reitor da Universidade de Salamanca.
Seu universo e sua universidade tinham sido tomados por falangistas. Transcrevo com os nomes dos atores o trecho da peça teatral que, em 1966, seria alvo da censura do governo militar, o mesmo regime aplaudido e reverenciado pelo atual presidente brasileiro:
"No Dia da Raça, uma cerimônia reuniu as mais importantes figuras do poder fascista. E o general Milan Astray, fundador com Franco, da Legião Estrangeira, discursava:
O militar, na voz do ator Oduvaldo Vianna Filho:
O fascismo vai restaurar a saúde de Espanha! Abaixo a inteligência!
Viva a morte!
CORO
(Fazendo a saudação fascista.)
Viva a morte!
VIANNA
Espanha!
CORO
Unida!
VIANNA
Espanha!
CORO
Forte!
VIANNA
Espanha!
CORO
Grande!
VIANNA
Viva la muerte!
CORO
Viva!
Caberia a Paulo Autran assumir o papel de Unamuno.
AUTRAN
Senhores!
Senhores! Meu nome é Miguel de Unamuno. Todos me conhecem. Sabeis que sou incapaz de me calar. Há momentos que calar é mentir. Desejo comentar o discurso - se é possível empregar esse termo - do general Milan Astray, aqui presente. Acabei de ouvir um brado necrófilo e insensato: "viva a morte". E eu que passei minha vida dando forma a paradoxos, devo declarar-vos, aos setenta e dois anos, que um tal paradoxo me é repulsivo.
O General Milan Astray é um aleijado. (Reação do coro.)
Não há nesta afirmativa o menor sentido pejorativo. Ele é um inválido de guerra; Cervantes também o era. Infelizmente há na Espanha neste momento um número muito grande de aleijados, e em breve haverá um número muito maior, se Deus não vier em nosso auxílio. Causa-me dó pensar que o general Milan Astray esteja formando a psicologia da massa. Um aleijado destituído da grandeza espiritual de um Cervantes tende a procurar alívio causando mutilações em torno de si.
VIANNA
Abaixo a inteligência! Viva a morte!
CORO
Viva!
VIANNA
Viva a morte!
CORO
Viva!
AUTRAN
Senhores!
Este é o templo da inteligência! E eu sou seu sacerdote mais alto. Profanais este sagrado recinto. Ganhareis, porque tendes a força bruta. Mas não convencereis. Porque para convencer é necessário possuir o que vos falta: razão e direito em vossa luta. Considero inútil exortar-vos a pensar na Espanha. Tenho dito.
VIANNA
(Com ar triunfante)
Abaixo a inteligência! Viva a morte!
CORO
Viva a morte!
VIANNA
Viva a morte!
CORO
Viva!
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