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Governo mantém contato com associação acusada de disseminar ódio nos EUA

A ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves; participa de coletiva de imprensa no Palácio do Planalto                              - Agência Brasil
A ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves; participa de coletiva de imprensa no Palácio do Planalto Imagem: Agência Brasil

Colunista do UOL

24/08/2020 04h03

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Resumo da notícia

  • ADF International é organização ultraconservadora com orçamento de US$ 50 milhões
  • Associação fornece apoio jurídico em pautas contra aborto e casamento homoafetivo
  • Ministério dos Direitos Humanos mantém contato com ADF para "princípios compartilhados"
  • Em organismos internacionais, Brasil passou a se opor a pautas ligadas ao aborto legal

O governo brasileiro tem mantido contato com uma das entidades americanas consideradas como ponta de lança de um projeto antiaborto e ultraconservador, a Alliance Defending Freedom (ADF International). O grupo ampliou sua influência durante a gestão de Donald Trump e passou a ser classificado por monitores de extremismo como um "grupo de ódio".

Procurada pela reportagem, a ADF não respondeu aos pedidos de esclarecimento. Já o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, ponto de contato entre a entidade e a gestão Bolsonaro, confirmou que "interage" com a organização americana.

"Os princípios compartilhados com a ADF, em geral, referem-se à defesa dos valores humanos", respondeu o ministério sobre a entidade nos Estados Unidos (EUA).

A pasta ainda sustentou a explicação da própria ADF ao ser questionada se não havia um desconforto em manter encontros e eventos com uma entidade classificada como "grupo de ódio".

"De fato, até o momento, nas interações com a ADF, não identificamos nenhum posicionamento radical ou desrespeitoso para com qualquer segmento social. Por outro lado, o que visamos efetivamente, não é o ódio, mas o fortalecimento de vínculos familiares, cidadãos, sociais e internacionais com um profundo respeito ao pluralismo", completou o governo brasileiro.

Nos últimos meses, a coluna vem revelando como o governo brasileiro modificou de forma substancial seu posicionamento internacional em temas relacionados com os direitos das mulheres.

Agenda antiaborto

O Brasil passou a tentar vetar artigos em resoluções que pudessem ser interpretadas como uma brecha para o reconhecimento do aborto como uma opção legal, referências à saúde sexual e direitos reprodutivos. Agiu ainda para tentar incluir a referência ao papel das entidades religiosas na defesa dos direitos das mulheres.

Em Brasília, funcionários do Estado envolvidos com o processo de formação da postura do Brasil na ONU revelaram como o governo se aproximou da ADF.

Um dos temas comuns é a questão do aborto. Em seu site, a entidade americana chega a alertar para a existência de uma "indústria inteira que lucra com cada criança morta no útero".

Um dos apelos do grupo é para que a sociedade "reconheça a dignidade humana dos bebês não nascidos" e que "proteção legal" deveria ser garantida a eles.

"O aborto legal não protege as mulheres. O aborto certamente mata os bebês no útero, mas também pode levar à lesão ou à morte da mãe. A Alliance Defending Freedom tem auxiliado os advogados aliados no litígio de vários desses casos e continuará a proteger o bem-estar físico tanto da mãe quanto do filho", argumenta a ADF.

Associação mantém aliança com 3.000 advogados nos EUA

Com essas e outras plataformas, a entidade se transformou, nos últimos anos, num dos grupos de pressão mais influentes nos EUA. Com um orçamento de mais de US$ 50 milhões, 60 funcionários permanentes e mais de 3.000 advogados em seus casos, a organização soma 54 vitórias em processos na Corte Suprema americana.

Sob a administração de Trump, o grupo ainda ganhou acesso aos principais corredores do poder. A ADF ainda ganhou espaço na imprensa americana ao defender um confeiteiro que se negou a fazer um bolo de casamento para um casal homossexual.

Nesse processo de expansão da ADF, a relação com o Brasil se fortaleceu com a gestão de Damares Alves no Ministério de Direitos Humanos. Em meados de 2019, ela aproveitou uma viagem aos EUA para se reunir com a entidade, em Washington. Ela ainda esteve no Departamento de Estado norte-americano.

Dias antes, o Brasil decidiu participar de um evento patrocinado na ONU, em Genebra (Suíça), pela ADF International. O tema: a liberdade religiosa. O governo aproveitou o evento para denunciar a suposta perseguição contra cristãos.

Representantes da mesma organização têm feito parte de reuniões entre a pasta de Direitos Humanos e o Itamaraty. No dia 22 de maio de 2020, por exemplo, um encontro ocorreu envolvendo deputados brasileiros, representantes do Itamaraty, do Ministério de Direitos Humanos e Tomás Henriquez, da ADF Chile.

Nos EUA, ADF é acusada de ser grupo de ódio

Em 2017, o senador americano Al Franken já afirmava que entidade seria um "grupo de ódio", algo contestado pelo grupo religioso.

Ele se referia a uma classificação anunciada pela entidade Southern Poverty Law Center (SPLC), que tem focado seus esforços em mapear grupos de ódio nos EUA, além de combater o racismo e injustiças. Seus especialistas concentram seu trabalho no monitoramento de grupos extremistas.

A SPLC explicou que tal classificação foi estabelecida diante da postura da ADF contra grupos LGBT. "ADF difunde mentiras sobre a comunidade LGBT", diz o Southern Poverty Law Center.

"Por exemplo, ela vinculou o fato de ser LGBTQ+ à pedofilia e alegou que uma "agenda homossexual" irá destruir a sociedade", explicou o SPLC. "A ADF tenta expressar sua retórica em frases benignas, mas a verdade é que ela trabalha para desumanizar as pessoas LGBTQ+ e restringir seus direitos de serem quem são", alerta.

Outros exemplos estão as defesas de advogados do grupo a estudantes que tentam distribuir panfletos religiosos em universidades e processos contra pessoas transgênero. O grupo ainda providenciou uma defesa para uma proprietária de uma floricultura que se recusou a fornecer arranjos florais para um casal entre duas pessoas do mesmo sexo.

Associação nega as acusações e questiona detratores

A ADF, porém, rejeita ser classificado como "grupo de ódio", nega qualquer tipo de extremismo e questiona a credibilidade da SPLC. Para ele, trata-se "organização politicamente partidária e voltada para a captação de recursos".

"Enquanto o SPLC fez um bom trabalho décadas atrás lutando contra a segregação no Sul, ele se tornou uma organização não confiável, cheia de escândalos e ativista de extrema esquerda que ataca qualquer um que discorde de sua estreita agenda política", acusa a ADF.

Nos últimos anos, a organização deixou o território americano e, segundo grupos de ativistas e feministas, passou a exportar ideia como a de contestar direitos reprodutivos e sexuais em documentos da ONU.

A entidade ainda montou escritórios em diversas partes do mundo e passou a dar assistência legal para casos nos tribunais da Suécia, Colômbia, Reino Unido e vários outros lugares.

Entidade brasileira com presença de Damares acompanha ADF pelo menos desde 2012

Anos antes, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos estabeleceu um acordo com a ADF. A associação brasileira tinha, como membro em 2012 e 2013, a advogada e pastora Damares Alves.

Num comunicado que anunciava o projeto, chamado de Blackstone Legal Fellowship, a associação indicou que a parceria tinha como objetivo "enviar estudantes evangélicos brasileiros que cursam direito para fazer um estágio intensivo nos EUA".

Numa recente reportagem, o jornal The Guardian ainda revela como, em Belize, o ADF deu apoio a uma organização que pressionava para criminalizar o sexo entre duas pessoas do mesmo sexo, enquanto na Índia seu representante comemorou decisões dos tribunais contra gays. Já na Romênia, a entidade apoiou um referendo para tentar impedir a união civil entre pessoas do mesmo sexo.

Num caso na Corte Europeia de Direitos Humanos sobre pessoas transgênero, advogados da ADF argumentaram que "igualdade de dignidade não significa que toda orientação sexual merece o mesmo respeito".

Em sua argumentação, os advogados ainda usaram termos ultrapassados e hoje rejeitados na OMS para designar trans como uma "desordem mental".

Para quem acompanha a história do grupo, isso não deve surpreender já que um de seus fundadores, Alan Sears, é autor de um livro: "A Agenda Homossexual - Expondo a principal ameaça contra a liberdade religiosa hoje".