Jamil Chade

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Carta ao Nobel: a literatura é universal. E vocês?

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Prezados membros do Comitê do Nobel,

No próximo dia 5, vocês anunciarão a nova ou o novo vencedor do prêmio Nobel de Literatura. Desde 1901, muitos dos escolhidos fazem parte da história da humanidade. Homens e mulheres que moldaram a forma pela qual pensamos o passado, lidamos com o presente e sonhamos com o futuro.

Há um ano e depois do prêmio mais que merecido dado para a francesa Anne Erneaux, escrevi pedindo que suas escolhas sejam descolonizadas. Agora, insisto: vocês têm um papel fundamental em lutar contra a história única e em transformar a vida de milhões de leitores do que vocês e a geopolítica chamam de "periferia do mundo".

Vou contar um segredo para vocês que, talvez, ainda não tenha sido ecoado em sua totalidade nos palácios escandinavos: é pelas palavras de Conceição Evaristo, Mia Couto, Ailton Krenak, Eliane Brum, Tom Farias, Jefferson Tenório, Paulina Chiziane, Eliana Alves Cruz, Kalaf Epalanga e tantos outros escritores que uma parcela da humanidade se sente viva e representada.

A poesia que eles produzem é o espelho da luta pela dignidade, certamente um valor universal.

Nas decisões que estão em suas mãos, é preciso que se reconheça, antes de mais nada, a universalidade da arte e, assim, dar um passo fundamental para romper paradigmas que limitaram a compreensão do ser humano.

Em mais de um século, o que prevalece nas escolhas de vocês é uma visão eurocêntrica da literatura e, no fundo, da civilização. Iniciado em 1901, o prêmio apenas saiu da Europa em 1913, quando o vencedor foi um indiano. Foi só em 1930 que um segundo prêmio saiu da Europa. Neste caso, ao americano Sinclair Lewis.

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Foram necessários mais 15 anos para que, de novo, o Nobel considerasse que a literatura de fora da Europa era merecedora de um prêmio. É verdade que, nos últimos anos, os escolhidos incluiram Turquia, Peru ou Tanzania.

Mas é muito pouco. Até hoje, 15 franceses venceram o prêmio, contra 10 para o Reino Unido e outros 10 para americanos. Alemães e suecos venceram oito prêmios cada. Salvo o caso dos EUA, todos os dez primeiros colocados em termos de nacionalidades são europeus.

Juntos, essas nacionalidades representam mais da metade de todos aqueles que venceram o prêmio. Se não bastasse, o ex-responsável do comitê, Horace Engdahl, abriu uma polêmica há alguns anos quando declarou que a "Europa ainda é o centro do mundo literário".

A literatura é, para além do idioma escolhido, uma expressão universal. Ela não conta apenas a história de um povo. Mas da natureza humana. Desperta paixões, destapa emoções escondidas, desvenda medos e sonhos sem qualquer fronteira, padrão ou dicionário.

Criar qualquer tipo de hierarquia é negar o fato de que a arte nos define como humanos. É pela arte que conhecemos nossos ancestrais, refletidos em muros de cavernas, em papiros ou em obras que ainda estão sendo desenterradas.

Num mundo fraturado, novos caminhos para promover a paz serão necessários, sem atalhos. E um deles é a arte. A literatura permite que uma pessoa volte no tempo e aprenda sobre a vida na Terra com aqueles que viveram antes de nós, nas mais diferentes vozes que uma história pode ter. Ou que conheça realidades que não são suas, antes de julgar ou impôr soluções.

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Sair do eixo do poder e reconhecer a literatura como universal é, portanto, um plano de paz.

Ao descrever quem receberia o prêmio, Alfred Bernhard Nobel explicou que a honraria deveria ir àquele que deu "maior benefício para a humanidade".

Pergunto, portanto, quem faz parte da humanidade para os senhores?

Dia 5 de outubro saberemos.

Saudações democráticas,

Jamil

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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