Jamil Chade

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Carta à ONU: quantos morreram enquanto os belos discursos eram lidos?

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Caro secretário-geral da ONU António Guterres,

Como ocorre todos os anos, líderes internacionais usaram o palco mais famoso da diplomacia nesta semana para proferir seus discursos, durante a abertura da Assembleia Geral da ONU.

Mas, enquanto promessas de paz e desenvolvimento ecoavam ainda pelas salas do prédio de Nova York, a Rússia lançava uma operação de grande escala sobre o território ucraniano, os sauditas anunciaram que iriam desenvolver uma bomba atômica se o Irã seguir na mesma linha, gangues no Haiti declaravam que iriam derrubar o primeiro-ministro, o Azerbaijão iniciava uma ofensiva militar no enclave de maioria armênia Nagarno-Karabakh, centenas de imigrantes desembarcaram em Lampedusa e o calor era evidente nas cidades brasileiras.

Naquele dia, cerca de mil crianças morreram no mundo vítimas de diarreia. Em completo silêncio e ignoradas.

A cada minuto de discursos cuidadosamente elaborados, uma criança morria de pneumonia. Em completo silêncio e ignorada.

Naquela noite, 750 milhões de pessoas iam dormir famintas e 110 milhões de deslocados e refugiados sentiam saudade de suas casas e de suas vidas.

E nada disso é inevitável. Nada.

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Mais uma vez, porém, sonolentos discursos embalam a inércia de um mundo que vive um dos momentos mais sombrios em décadas e que, mesmo assim, não abala o balé de limusines, jantares de gala, reuniões apáticas e diálogos de surdos.

Se somarmos tudo o que foi dito nesta semana, a realidade é que a equação não fecha. E por um só motivo: o que impera é a hipocrisia. Suspeito que não seja o mar que causa náusea para milhões de refugiados que tentam escapar da morte e se aventuram em cruzar as águas do Mediterrâneo.

Ouvimos do presidente americano, Joe Biden, que o destino de bilhões de pessoas pelo mundo o preocupa, enquanto mantém sanções seletivas contra inimigos, entrega de armas para os amigos e apoio financeiro para quem não lhe conteste o poder.

Ouvimos da boca de ditadores que seus regimes "continuam a fortalecendo a democracia". Ouvimos do presidente do Irã, Seyyed Ebrahim Raisi, que seu país é "o futuro". Mas o silêncio imperou sobre a repressão contra as mulheres que se rebelaram, justamente por não ter futuro.

Também vimos um teatro de sombras, com fantoches gesticulando enquanto os cabos que suspendem seus braços - e legitimidade - estavam a olhos nus.

Num dos alertas mais poderosos, emergentes apontavam desesperadamente que estava na hora das grandes potências entenderem que o mundo mudou. A incapacidade de a comunidade internacional promover uma reforma não significaria que o status quo seria mantido. Mas que viveríamos um colapso do próprio sistema que, de maneira frágil, atravessou os últimos 70 anos.

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Não faltaram os charlatães e vendedores de ilusão, como o presidente de El Salvador que resolveu que o assento de seu país na sala da ONU seria ocupado por sua filha pequena. Em casa, ele prorroga a cada mês seu "regime de exceção". Suas leis, em nome do combate ao crime, suspendem garantias individuais, o direito de defesa e a liberdade de associação. Sua política de encarceramento em massa levou El Salvador a ter a maior taxa de pessoas presas no mundo.

Poucos daqueles discursos sobreviveriam a um simples teste de realidade. A meta de erradicar a pobreza extrema e a fome extrema até 2030 está sob ameaça e bastaria, por ano, um quarto do dinheiro destinado às armas para que esses velhos sonhos da humanidade fossem atingidos.

Com metade do dinheiro destinado para a guerra na Ucrânia o mundo atenderia 250 milhões de pessoas afetadas por crises humanitárias espalhadas por mais de 40 países.

Sem compromissos sólidos, os maiores emissores de CO2 do planeta sequer foram convidados para a reunião nesta semana na ONU para tratar do assunto. O motivo? A sua secretaria não tolera mais o uso de seus eventos para que esses líderes continuem mentindo.

Neste teatro do absurdo onde parte é realidade e parte é pesadelo, como diria Martin Esslin, o que se constata é um triste espetáculo da falência de um sistema.

Hoje, precisamos reconhecer: a irrelevância da ONU não é um risco. É uma realidade. Ela é consequência de um mundo fraturado e a de uma estrutura que perpetua a concentração de poder na mão de poucos.

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A resposta, porém, não é fechar suas portas, como pretende a extrema direita, e transferir a tela de Portinari a um museu.

Num cenário no qual não existem soluções nacionais para as crises que nos afetam, seguir a receita de esvaziar a entidade ainda mais significaria abrir mão da única experiência real de uma resposta global aos desafios que afetam a todos.

Encerrar a única tentativa de se traduzir em ação, tratados legais e esforços diplomáticos o sonho da paz perpétua apenas nos jogará num inferno ainda mais dramático, com consequências imprevisíveis.

Alguns diriam que eu, depois de 23 anos nos corredores da ONU, ainda não entendi o que é política e o conceito de poder. Se equivocam. O que eu me recuso a entender é nossa indiferença ao sofrimento e a capacidade de aceitar tanta hipocrisia como parte de nossa era. Me recuso a burocratizar minhas utopias e ceder às tentações infantis dos nacionalismos.

Construir uma nova governança mundial não é uma opção. É uma necessidade. Em jogo, está nossa sobrevivência.

Saudações democráticas,

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Jamil Chade

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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