Vacina, 5G e comunismo: o discurso casado de Bolsonaro e Trump contra China
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Resumo da notícia
- Entre janeiro e setembro, a China foi o destino de 33% das exportações brasileiras. O mercado americano representou apenas 9%.
- Hoje, a dependência brasileira com a China se equipara à relação comercial que emitiu entre Brasil e EUA entre 1910 e 1914
- Apesar da realidade comercial, Bolsonaro passou a fazer eco à estratégia americana de tentar frear a expansão chinesa no mundo
Raramente uma semana passa sem que algum membro do governo de Jair Bolsonaro faça uma crítica à China. Em certos momentos, ela ocorre em público, por meio de frases do próprio presidente ou ministros. Mas também são várias as testemunhas que apontam como tal situação também faz parte dos bastidores da diplomacia em Brasília.
Não se trata de algo que ocorre por acidente. O governo brasileiro aderiu de forma explícita a uma ofensiva de Donald Trump, em possível fim de mandato, para frear a expansão chinesa, seja no comércio, em sua influência em entidades internacionais, na questão tecnológica ou mesmo em vacinas.
A percepção americana é de que o que está em jogo hoje é uma disputa pela hegemonia nos próximos 30 anos. Negociadores que circulam pela Casa Branca confirmaram à coluna que, nesse aspecto, o momento é o de construir muros para impedir que o eixo do poder se transfira definitivamente para a Ásia.
Essas mesmas fontes confirmam que, na administração americana, o papel do Brasil é considerado como estratégico na América Latina e nos organismos internacionais diante de um cenário de avanço da China em um mundo pós-pandemia.
Mas enquanto há um pacto neste sentido entre o Departamento de Estado norte-americano e o Itamaraty, a realidade das contas do Brasil aponta para uma outra direção. Hoje, mais da metade do superávit comercial do Brasil ocorre graças à sua relação com a China.
Dados oficiais do governo brasileiro indicam que, entre janeiro e setembro de 2019, o saldo positivo na balança comercial brasileira era de US$ 35 bilhões. Desses, US$ 20 bilhões vinham da China. Naquele momento, o Brasil mantinha um déficit pequeno com os Estados Unidos (EUA), de menos de US$ 400 milhões.
Brasil passou a ter relação mais deficitária com EUA em 2020
Mas, em 2020, com o desabamento da economia americana e barreiras impostas por Trump, o déficit do Brasil com os EUA superou a marca de US$ 3 bilhões. Se em 2019 o Brasil exportou US$ 22 bilhões ao mercado americano, o valor caiu para apenas US$ 15 bilhões este ano.
Já com a China, o caminho foi inverso. O país aumentou suas exportações ao mercado asiático, passando de US$ 46 bilhões em 2019 para US$ 53 bilhões em 2020, mesmo com a pandemia.
O saldo positivo do Brasil com os chineses, assim, passou de US$ 20 bilhões para quase US$ 29 bilhões. Se em 2019 a China representava 27% do destino de exportações do Brasil no período entre janeiro e setembro, essa taxa subiu para um patamar inédito de 33% em 2020.
Com esse salto, os chineses se distanciaram do segundo maior parceiro comercial do Brasil, os EUA. Em 2020, o mercado americano se contraiu para os produtos nacionais e representou apenas 9% dos destinos das vendas. Na prática, o Brasil exportou três vezes mais para a China.
"Hoje, do ponto vista econômica, o Brasil é mais depende da China que em qualquer momento da história", disse Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais na Fundação Getúlio Vargas (FGV) e coordenador do programa de pós-graduação da Escola de Relações Internacionais da FGV. "O que chama a atenção é que essa dependência aumentou", disse.
Dependência do Brasil com a China deve continuar, avalia especialista
O especialista lembra que as taxas hoje do comércio brasileiro com a China se equiparam à situação que existia entre o Brasil e os EUA entre 1910 e 1914. "Nada indica que a dependência deixará de existir", disse. Segundo ele, a recuperação mais rápida da economia chinesa pode inclusive aprofundar essa relação.
O desabamento nas exportações brasileiras para os EUA não se explica apenas por conta da queda da economia americana. No setor siderúrgico, por exemplo, o país abriu mão de parte de sua cota de exportação para o último trimestre de 2020, a pedido do governo Trump.
O compromisso é de que, em 2021, essa cota de cerca de 290 mil toneladas avaliada em milhões de dólares será compensada. Mas o que ficou nas entrelinhas das negociações era que a suspensão das vendas brasileiras ajudaria um setor econômico americano que poderia apoiar Trump na eleição.
A briga pelo 5G
Se os números do comércio apontam para uma dependência cada vez maior da China, na diplomacia o esforço vai justamente no sentido contrário.
Desde o início de seu governo, Donald Trump proliferou diferentes frentes de tensão contra a China. Washington aplicou barreiras no valor de mais de US$ 350 bilhões contra bens chineses, acusou empresas de Pequim de serem usadas no setor de tecnologia e de internet de espionar cidadãos e interesses americanos, criticou o governo chinês pela repressão em Hong Kong e contra a minoria muçulmana, ampliou a tensão nos mares da China e, mais recentemente, usou a pandemia para tentar denegrir a imagem do país.
Um dos aspectos mais críticos desse confronto é a tecnologia de comunicações, e a disputa por contratos de 5G seria apenas a primeira fase de uma crise maior entre as duas potências. O Brasil, portanto, é parte dessa guerra, ao ser cobiçado por ambos.
Há poucos meses, o procurador-geral dos EUA, William Barr, alertou que o avanço chinês nesse campo das telecomunicações 5G é uma das principais ameaças econômicas e de segurança nacional dos Estados Unidos. Segundo ele, se esse controle for estabelecido, Pequim usaria sua estrutura para impor uma vigilância a todos.
Segundo Barr, a Huawei e ZTE são responsáveis por cerca de 40% do mercado global de infraestrutura 5G, num mercado avaliado em trilhões de dólares.
Jogada no xadrez do comércio internacional
Em muitas dessas pautas, Bolsonaro foi usado para engrossar o coro contra Pequim. Na OMC (Organização Mundial do Comércio), o Brasil rompeu com os demais países emergentes para aceitar uma proposta americana de que, em futuros acordos, não se beneficie de tratamento privilegiado por ser um país em desenvolvimento.
A meta dos EUA, porém, é retirar esse status de país em desenvolvimento da China, uma condição que a permite manter certas barreiras extras ao comércio.
O discurso do "vírus chinês" e o desdém pela vacina
Na OMS (Organização Mundial da Saúde), o Brasil também se aliou a uma proposta americana cujo objetivo é o de frear a influência chinesa na agenda de saúde global. A visão de Washington é de que, em parte, a pandemia não foi controlada a tempo diante da incapacidade de a agência de saúde dar uma resposta ao surto que surgiu na China.
Mas a agenda vai além e, para negociadores, a meta é a de aproveitar a pandemia para colocar barreiras à influência chinesa nas entidades internacionais. Hoje, das 15 organizações que compõem o sistema ONU, quatro são comandadas por Pequim.
A rejeição à vacina chinesa, portanto, faria parte dessa estratégia. Documentos internos da Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), por exemplo, revelam que, em 2022, o mundo dependerá da vacina de Pequim para abastecer 49% da demanda mundial.
Não por acaso, qualquer aproximação entre o Ministério da Saúde e os chineses era alvo de sabotagem por parte de outras pastas do Executivo. À coluna, o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, confirmou que cabia à diplomacia de Bolsonaro "azedar" a relação sempre que o então chefe da Saúde fazia um gesto positivo. "O Itamaraty jogava lenha na fogueira", lamentou.
Comunismo: um vilão providencial
Outra forma encontrada para minar o avanço chinês é transformar o combate econômico e tecnológico em uma guerra cultural contra o comunismo.
Em diferentes palestras e textos, o chanceler Ernesto Araújo fez alertas neste sentido. Um dos momentos que mais gerou a irritação internacional foi quando ele usou uma reunião do Conselho de Segurança da ONU para comemorar a derrota do nazismo para alertar sobre o perigo vermelho.
"Não vamos deixar a saúde ser mais uma vítima de um sequestro dessa ideologia para servir objetivos totalitários", afirmou o chanceler, pedindo que os demais países lutem para liberar esses valores da "manipulação e escravidão".
Duas semanas antes, o chanceler já havia escrito um texto sobre o risco que o mundo corria diante do que ele chamava de um "plano comunista" por parte de alguns para usar a pandemia para dominar as instituições internacionais, entre elas a OMS (Organização Mundial da Saúde).
Agora, Araújo admitiu que a covid-19 é a maior crise desde 2ª Guerra. Mas alertou que esse não é o momento de permitir um novo totalitarismo. "Não vamos deixar uma nova forma de totalitarismo aparecer agora como ocorreu depois da Segunda Guerra", disse.
Stuenkel, da FGV, acredita que a retórica anticomunista serve mais para atender e mobilizar o público doméstico e que serve de base ao bolsonarismo. O acadêmico aponta que, não por acaso, trata-se de uma postura "propositalmente vaga". "É a reciclagem de um pensamento que busca construir um inimigo poderoso e muito vago", disse, lembrando que as posturas do governo frequentemente não contam com evidência concreta.
China tem US$ 1,5 trilhão para gastar
Do lado americano, uma aliança com o Brasil é fundamental nessa lógica de barrar a China, principalmente diante da constatação de que ela ganha amplo terreno na América Latina.
Representativo dessa disputa pela região foi a visita do secretário de Estado norte-americano Mike Pompeo à América do Sul no mês passado. Além de Brasil e Colômbia, ele desembarcou na Guiana e no Suriname, no que foi a primeira visita de um chefe da diplomacia americana aos dois países na história. Em ambos, o recado foi o mesmo: evitem a China.
A viagem foi interpretada como uma tentativa dos americanos de conter a adesão de pequenos países latino-americanos ao projeto chinês "Belt and Road ". Pequim pretende investir US$ 1,5 trilhão em projetos pelo mundo, consolidando sua presença — e influência.
Na América Latina, 19 dos pouco mais de 30 países da região aderiram aos projetos chineses. Num total, entre investimentos diretos na América Latina e linhas de crédito, Pequim já despejou mais de US$ 300 bilhões. Os cheques tiveram resultados: Países como República Dominicana, Panamá e El Salvador abandonaram sua postura de reconhecimento da soberania de Taiwan, um sinal de apoio ao regime chinês.
Pompeo, porém, usou a viagem para mandar um recado aos governos da região: não se deixem seduzir pelas promessas chinesas.
"Nenhuma operação estatal pode superar a qualidade dos produtos e serviços das empresas privadas americanas", disse. "Temos visto o partido comunista chinês investir em países, e tudo parece ótimo e depois tudo cai quando os custos políticos ligados a isso se tornam claros", completou.
O interesse não ocorre por acaso. Recentes descobertas de petróleo, além de minérios e madeira atraíram nos últimos anos por parte de Pequim.
A resposta chinesa aos americanos foi enfática: deixe de espalhar acusações falsas. A disputa pela hegemonia na região, porém, está apenas começando.
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