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Jamil Chade

Para vencer a covid-19, mundo terá que se reencontrar como humanidade

Além do abraço que matará a saudade, será preciso abraçar uma transformação - Adriano Machado/Reuters
Além do abraço que matará a saudade, será preciso abraçar uma transformação Imagem: Adriano Machado/Reuters

Colunista do UOL

31/12/2020 04h04

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Só nós — e não a fatalidade do calendário — podemos encerrar 2020.

"E a morte, o destino, tudo. Estava fora do lugar", já dizia a canção. Um amigo em Nova York, há poucos meses, teve de interromper uma conversa comigo por estar atrasado para um funeral. Um funeral pelo Zoom. Era o terceiro naquela semana que ele participava. Todos virtuais. Todos com perdas e dores reais.

Famílias inteiras foram privadas de dar um último adeus e ficaram impedidas de buscar conforto no colo, no ombro ou no abraço de um amigo.

Conversando nesta semana com enfermeiras catalãs, na Espanha, perguntei o que havia sido mais dramático para elas diante de tantas mortes. E a resposta me deixou arrepiado: segurar o celular para que a família, à distância, confessasse erros do passado íntimo, pedisse desculpas, prometesse que seguiria os ensinamentos daquele que partia ou falasse "eu te amo" pela última vez à pessoa que estava morrendo.

Terá 2020 sido um momento chave na história do luto e dos ritos de despedida? Ao longo dos séculos, tais tradições foram moldadas pela cultura, pela realidade de cada comunidade e pela tecnologia.

Sem corpo ou sem último beijo, 2020 chacoalhou nossa forma de lidar com a morte. E, portanto, chacoalhou com a vida, com nossas referências, com as lideranças morais e com a credibilidade das autoridades.

Esqueça o calendário

Boccaccio, em 1348, escreveria sobre como sua Florença era consumida pela Peste Negra e seu impacto na sociedade. "Na medida em que nossa cidade afundava nessa aflição e miséria, a autoridade reverenciada da lei — ambas divina e humana — afundava com ela", constatou.

Todos, sem exceção, torcemos para virar a página do calendário. Mas todas as previsões apontam que as próximas semanas verão números ainda elevados de mortes que nos farão perguntar: Já não estamos em 2021? Onde foram parar as promessas?

Temos a esperança de que 2020 terminará por uma espécie de fatalidade e que sequer temos como parar. Na nave errante que estamos, basta esperar e teremos virado a página.

A realidade é que 2020 não terminará por si só. Não será o calendário que colocará um fim ao ano. Mas sim a humanidade. Isso envolve romper com festas que celebram o egoísmo. Isso envolve fazer cálculos não apenas do teu risco. Mas dar um fim à cegueira sobre a situação da senhora que limpa teu excesso de álcool no banheiro e não terá acesso a uma UTI. Isso implica solidariedade não apenas com a família. Proteger meu adversário pode significar a sobrevivência de meus mais adorados parceiros.

O abraço, tão esperado

Não teremos como seguir o caminho de Orfeu e buscar nossos amados no mundo dos mortos. Só poderemos verdadeiramente homenagear aqueles que se foram em 2020 se nós que ficamos mudarmos a rota e transformarmos 2021 não em um ano da vingança ou da retomada. Mas da reconciliação.

A reconciliação como a capacidade de voltar a abraçar. Abraçar um amigo. Abraçar uma transformação.

Dar um ponto final em 2020 depende de nossas ações. Não das voltas que a Terra dá pelo cosmo.

Logo descobriremos que iremos nos abraçar tanto para comemorar o reencontro como para concluir o adeus que havia ficado em um limbo. Serão abraços para fechar capítulos, indispensáveis para abrir novas etapas. Indispensáveis para que possamos nos definir como humanidade.

2021 depende de nós. E só de nós.