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Sob duras críticas, ala ideológica do governo vai à ONU com força máxima
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Criticado pela sociedade civil brasileira e estrangeira, indígenas, ambientalistas, governos de direita e de esquerda, entidades internacionais, pela ONU e por religiosos, o governo de Jair Bolsonaro decidiu enviar às Nações Unidas seus dois principais ministros da cota ideológica do Planalto para se defender de um número inédito de denúncias sofridas pelo Brasil desde sua redemocratização.
Na segunda-feira, o Conselho de Direitos Humanos da ONU abre sua primeira reunião do ano, com a participação virtual de 130 chefes-de-estado e ministros, além da cúpula da organização internacional. O Brasil, porém, é o único que aparece na agenda oficial do encontro representado por dois ministros: Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Damares Alves (Família, Mulher e Direitos Humanos).
De acordo com a ONU, esse será um "caso único" de um país com dois oradores. O tempo destinado ao discurso do Brasil, de oito minutos, será dividido entre os dois ministros.
Damares Alves já indicou que usará o palanque para fazer publicidade das ações de Bolsonaro para a proteger a população na pandemia. Outro foco do discurso, segundo fontes em Brasília, poderá ser o "tecno-totalitarismo", o novo mantra de Araújo.
O discurso não é uma provocação aos chineses, como alguns chegaram a interpretar. Mas, depois do silenciamento de Donald Trump nas redes sociais, uma ação dirigida contra as tentativa das plataformas de colocar um limite ao discurso de ódio e a proliferação de desinformação conduzidas por governos, como o que Araújo representa.
Procurado, o Itamaraty não se pronunciou ao ser questionado sobre o motivo da participação dupla do Brasil. Nos últimos dois anos, Damares foi a única a representar o governo nessa reunião. Nos governos anteriores, também sempre coube ao chefe da pasta de Direitos Humanos representar o país nos debates.
A participação dos ministros, porém, ocorre num momento em que a sociedade civil acusa o governo de promover um desmonte das políticas de direitos humanos no país. Durante as cinco semanas de reuniões na ONU, o Brasil será alvo de um tsunami de denúncias de violações de direitos humanos, em atos liderados por ongs, governos estrangeiros e pela própria ONU.
Enquanto tentam vender uma imagem de compromisso com os direitos humanos, Damares e seus secretários estão sob ataque por iniciar um processo de reavaliação do Plano Nacional de Direitos Humanos sem a participação da sociedade civil. Isso, no fundo, ameaça violar um dos pilares do sistema internacional de direitos humanos, guias estabelecidos pela ONU e mesmo compromissos assumidos pelo Brasil.
Na semana passada, o governo anunciou a criação de um grupo de trabalho para propor mudanças nas políticas de direitos humanos no país. Todos os 14 membros da força-tarefa são da pasta liderada por Damares. O regulamento ainda proíbe a divulgação de qualquer informação sobre as discussões do grupo até o encerramento de suas atividades, em novembro. Representantes de entidades públicas ou privadas poderão ser convidadas para as reuniões, mas sem direito a votar.
Um dos temores de ativistas é de que o governo brasileiro esteja caminhando nos mesmos rumos adotados pelo ex-presidente Donald Trump que, nos últimos dois anos de seu mandato, também criou um grupo de trabalho para rever o conceito de direitos humanos. No caso, a iniciativa tinha como objetivo restaurar o direito natural em algumas questões, limitar direitos para minorias, fechar qualquer porta para saúde sexual e reprodutiva e redefinir até mesmo conceitos que passaram a ser consenso no mundo nos últimos 30 anos.
Sonia Correa, pesquisadora da ABIA - Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS e co-coordena o Observatório de Sexualidade e Política (SPW), avalia que "a presença superlativa" do Brasil no Conselho pode ter dois objetivos.
"Um deles é exibir ao mundo o bastão que o Brasil recebeu do derrotado governo Trump para ocupar a partir de agora a liderança global em políticas regressivas em relação a proteção seletiva da liberdade religiosa e repúdio sistemático a gênero e direitos sexuais e reprodutivos, em particular o direito ao aborto", disse.
"O outro parece ser uma tentativa, certamente fadada ao insucesso, de obscurecer frente ao Conselho de Direitos Humanos o flagrante desmonte da política nacional de direitos humanos, gradualmente consolidada desde os anos 1990 e respeitada internacionalmente", completou.
Negacionismo
Uma tentativa de vender uma imagem positiva do Brasil no que se refere à covid-19 também tem sido alvo de preocupação por parte da sociedade civil.
"O governo Bolsonaro insiste em promover uma agenda anti-direitos nos planos doméstico e internacional", alertou Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights Watch no Brasil. Segundo ela, o Brasil deveria abandonar "de uma vez por todas o discurso negacionista em relação à covid-19 e a defesa de tratamentos não comprovados cientificamente".
"De modo pouco usual o governo manda dois representantes de seu alto escalão à ONU para defender a obscurantista resposta brasileira à pandemia. Será tarefa dura já que, diante da comunidade internacional, não há espaço para o negacionismo, nem para a defesa de tratamentos sem a chancela da ciência", avalia Camila Asano, diretora de programas da Conectas.
Armas e condição de pária
O desembarque da ala ideológica do Bolsonarismo na ONU ainda ocorre num momento em que a entidade acompanha com preocupação quatro novos decretos do governo ampliando o acesso de armas à população e amplia o limite de aquisição de munições. Pelos decretos, o presidente sobe para seis o limite de armas que podem ser compradas pelos cidadãos.
"O Brasil também terá de explicar porque, enquanto todo o mundo corre para garantir o suprimento de vacinas, o governo investe em medidas para armar ainda mais a população. São atitudes que colocam em cheque nossa credibilidade internacional", insiste Camilo Asano.
Já Maria Laura Canineu acredita que o momento é de definição. "Se não quiser se manter como um pária internacional, o governo Bolsonaro deve mudar radicalmente o rumo da sua política de direitos humanos", defendeu.
Para ela, o governo precisa "parar de estimular a letalidade policial, cessar as ameaças contra a imprensa, abandonar as políticas educativas de segregação das pessoas com deficiência e retirar as novas barreiras ao acesso das mulheres aos serviços sexuais e reprodutivos".
"E deveria abandonar o plano de que um grupo de trabalho sem participação de qualquer um que discorde do governo revise em segredo o Programa Nacional de Direitos Humanos", completou.
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