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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Bíblia e bala foram usadas contra manifestantes pró-Evo, conclui inquérito

A então presidente interina da Bolivia Jeanine Áñez em coletiva no Palacio Quemado em La Paz - Bruno Santos/ Folhapress
A então presidente interina da Bolivia Jeanine Áñez em coletiva no Palacio Quemado em La Paz Imagem: Bruno Santos/ Folhapress

Colunista do UOL

17/08/2021 10h59

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Resumo da notícia

  • Investigação internacional aponta para uso abusivo da força por parte de militares e policiais na Bolívia, em crise política de 2019
  • Documento de quase 500 páginas também revela violações de direitos humanos por todos os atores envolvidos no processo
  • Com a participação de procurador brasileiro, grupo de especialistas pede fim da impunidade e que as vítimas possam ter uma resposta da Justiça
  • Acusado de suposta fraude, Evo Morales acabou sendo derrubado e Bolsonaro foi um dos primeiros a reconhecer governo interino liderado por Añez.

Policiais e o exército usaram de força excessiva contra manifestantes na Bolívia, durante a crise política de 2019, resultando em graves violações de direitos humanos e mortes. Enquanto isso, a Bíblia foi usada pela liderança política para justificar atos de discriminação, exclusão e racismo, contra exatamente a mesma população afetada.

Essas são algumas das conclusões de uma investigação conduzida por um grupo internacional estabelecido depois que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recomendou a apuração dos fatos e abusos cometidos no país sul-americano. Para o grupo, o estado deve ser responsabilizado por pelo menos parte das mortes identificadas e os autores precisam ser levados à Justiça.

Naquele momento, acusado de uma suposta fraude nas eleições, o então presidente Evo Morales foi derrubado e assumiu a presidência da Bolívia a então senadora Jeanine Añez, imediatamente reconhecida por Jair Bolsonaro como o governo legítimo assim que ensaiou sua posse.

A investigação publicada nesta terça-feira não foi focada no sistema eleitoral e nem na suposta fraude. Mas nas violações cometidas contra a população em diferentes momentos das manifestações. Ao longo de meses, um inquérito apurou o que ocorreu nas cidades bolivianas entre setembro e dezembro de 2019 e, em quase 500 páginas de um informe que está sendo publicado nesta terça-feira, constata que graves violações aos direitos humanos e a impunidade diante de processos na Justiça incapazes de determinar os responsáveis pelos crimes.

Entre os autores do informe está o procurador brasileiro, Marlon Weichert, além de outros quatro especialistas da região.

Nos relatos, o documento fala em tortura contra manifestantes, abusos sexuais e o uso de armas e munição letal por parte das forças de ordem. Em algumas situações, a investigação chega a apontar que o estado não atuou para evitar os enfrentamentos e, em pelo menos uma ocasião, facilitou o lançamento de dinamites contra grupos que se opunham ao governo. O informe ainda acusa as autoridades de incentivar a radicalização da sociedade e de ser cúmplice de atos de violência.

No dia 10 de novembro de 2019, Morales renunciou e relatos colhidos pelo grupo de especialistas indicam graves crimes.

Ainda que vários casos de abusos tenham ocorrido ainda com Morales no poder, o informe destaca como a intensidade e gravidade das violações ganharam uma nova proporção com sua saída.

Num dos casos, em 11 de novembro de 2019, o informe identificou uma repressão policial desproporcional, resultando na morte de pelo menos três pessoas, além de um número elevado de feridos. "Isso reflete um uso indiscriminado da força cujo objetivo não era apenas conter, mas causar ferimentos graves", constatou.

Há também denúncias como confrontos na Vila Vila e no ataque à "Caravana dos Mineiros" foi o resultado da polarização estimulada por agentes do Estado e políticos. Os investigadores identificaram "evidências de que membros do governo estavam envolvidos na organização e apoio aos bloqueios e, no mínimo, assumiram os riscos de que a violência pudesse ocorrer".

A conclusão, portanto, é de que o Estado foi "responsável pela violência ocorrida durante esses incidentes, incluindo a violência sexual contra as mulheres, a detenção e tortura de reféns na Vila Vila e as tentativas de homicídios em Challapata, além de outros danos pessoais e materiais e psicológicos".

O documento também constata que "o Estado é responsável pelas três mortes e, a fim de garantir o direito à vida das vítimas, tem o dever de conduzir investigações minuciosas e de perseguir e punir os responsáveis por essas graves violações dos direitos humanos".

Em outros locais, como Sacaba, o padrão de violência de militares e da polícia se repetiu, de forma "desproporcional e deliberadamente", gerando a perda de vidas e a ferimentos graves dos manifestantes.

"As mortes das vítimas de Sacaba constituem execuções sumárias e os eventos podem ser descritos como um massacre. Além disso, o grupo constatou que vários manifestantes foram detidos ilegalmente e submetidos a tortura ou tratamento cruel, desumano e degradante por parte da polícia", afirmou.

Em Senkata, o mesmo cenário foi identificado. "Como resultado do uso desproporcional da força, ocorreu um massacre na Senkata, no qual dez pessoas foram mortas e cerca de 78 pessoas ficaram feridas", disse.

"Embora as Forças Armadas e a Polícia não tenham admitido o uso de armas letais, as provas reunidas indicam que os tiros foram originados por suas tropas. De acordo com vários testemunhos, os feridos foram a vários hospitais onde foram vítimas de maus tratos, discriminação, racismo e negação de serviços médicos, sob o argumento de que eram simpatizantes do partido político Movimiento al Socialismo (MAS)", constata, numa referência ao grupo de apoio de Morales.

Em muitos casos, o pessoal hospitalar negou atendimento médico a pessoas que haviam sido baleadas. "Parentes do falecido impediram que seis dos corpos fossem transferidos para instituições públicas para autópsias. Isso foi devido à desconfiança dos parentes em relação às autoridades. Como resultado, seis autópsias foram realizadas na Paróquia de São Francisco de Assis, em Senkata", relatou o informe.

"Em 20 de novembro de 2019, uma vez que os parentes conseguiram recuperar os corpos dos mortos no massacre de Senkata, o Padre Guechy, pároco da Igreja de São Francisco em Senkata, permitiu que os parentes realizassem um velório coletivo na igreja. Nesse mesmo dia, parentes das vítimas e moradores da cidade de El Alto organizaram um protesto com milhares de pessoas, conhecido como a Marcha dos Caixões. O Estado, através da polícia, reprimiu arbitrariamente a marcha, resultando em ferimentos devido ao uso abusivo de gás. Além disso, considerando a natureza funerária do protesto, a repressão afetou a dignidade dos mortos e de seus parentes", concluiu o documento.

Bíblia como arma

Um outro aspecto da investigação mergulhou no racismo estrutural que existe contra os povos indígenas da Bolívia e como isso fez parte do confronto na sociedade. "O sucesso do MAS e a eleição de Evo Morales como presidente aumentaram a presença de representantes dos povos indígenas na Assembleia e em posições de autoridade", disse o informe.

"Os atos evidentes de discriminação contra os povos indígenas no período pós-2006 sugerem que a agenda política inclusiva do governo exacerbou o ressentimento dos setores tradicionalmente dominantes da sociedade e gerou consequentes atos de racismo. As ações iniciais do governo interino, como a remoção do Wiphala dos espaços oficiais, a promoção do cristianismo evangélico como norma norteadora do Estado e os discursos racistas, serviram para rejeitar a identidade, cultura e história indígenas", destacou.

Numerosos incidentes de racismo foram identificados no período avaliado pelos especialistas, sugerindo que certos setores da sociedade continuam hostis à noção de um estado plurinacional inclusivo.

"Durante o conflito em torno do processo eleitoral de 2019, os principais eventos incluíram um componente significativo de discriminação, intolerância e violência racial que reavivou uma questão de identidade histórica e estrutural enraizada no Estado boliviano", apontou o informe.

"O clima de polarização ideológica na população cresceu à medida que os líderes políticos incentivavam ou toleravam a violência por parte de seus respectivos simpatizantes, juntamente com uma intervenção ineficaz por parte das autoridades estatais. Esta polarização alimentou duas tendências: a estigmatização da população indígena, camponesa, rural, pobre ou de pele castanha como apoiadores do MAS; e a incorporação de uma ideologia religiosa no movimento político de oposição", explicou.

"De fato, o uso da Bíblia e da religião durante as reuniões do comitê cívico teve um papel importante na justificação da causa divina de seu movimento contra Evo Morales e na promoção de uma ideia anti-indigenista que procura restaurar o protagonismo do catolicismo na vida pública", revelou a investigação.

"Atos de discriminação racial foram manifestados em maior medida nas ações conjuntas dos militares e da polícia. A repressão e o uso de linguagem racista e anti-indígena foi dirigida exclusivamente contra a população mobilizada, a maioria dos quais eram indígenas, trabalhadores e camponeses, como ocorreu em Betanzos, Yapacaní, Montero, Sacaba e Senkata", insistiu o documento, que lembra que grande maioria das pessoas feridas, mortas ou detidas desde 10 de novembro pertencia a este segmento populacional.

Conclusões e recomendações


Ao concluir sua investigação, os especialistas internacionais confirmam que "no último trimestre de 2019, graves violações dos direitos humanos foram cometidas na Bolívia".

"No contexto de um conflito político cercado de violência, pelo menos 38 pessoas perderam suas vidas em várias partes do país, e centenas de pessoas foram gravemente feridas, tanto física como psicologicamente", indicaram.

"Os eventos envolveram a responsabilidade do Estado pelos atos de agentes estatais e particulares nas circunstâncias contempladas na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Polícia e as Forças Armadas, separadamente ou em operações conjuntas, usaram força excessiva e desproporcional e não conseguiram prevenir adequadamente os atos de violência, deixando os cidadãos desprotegidos", destacou.

Para o grupo, é essencial que aqueles que foram vítimas obtenham justiça, reparação pelos danos causados e atenção imediata para curar feridas.

A investigação insiste ainda sobre a necessidade de que se reconheça que "existem pessoas afetadas em ambos os lados do espectro político e que a situação de cada uma delas exige o reconhecimento de seu status de vítima".

"Um processo de recomposição do tecido social não pode ser concebido sem abandonar a ideia de que as vítimas são as de nossa identidade política enquanto as identificadas com o adversário são menos ou não exigem atenção", alertou.

O documento também deixa claro a responsabilização dos líderes políticos. "As manifestações não ocorreram de forma inesperada. Eles foram precedidos por discursos antagônicos de líderes reconhecidos e por decisões e ações políticas que colocaram em tensão as regras de funcionamento dos mecanismos participativos da democracia e das instituições que deveriam supervisionar seu cumprimento", disse o informe.