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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Documento reabre debate sobre conhecimento da Vale de corrupção na África

Beny Steinmetz foi condenado por subornar funionários na República da Guiné e falsificar documentos em compra de mina de ferro - STEFAN WERMUTH / AFP
Beny Steinmetz foi condenado por subornar funionários na República da Guiné e falsificar documentos em compra de mina de ferro Imagem: STEFAN WERMUTH / AFP

Colunista do UOL

02/02/2022 04h00

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Um processo que tramita nas cortes britânicas reabre o debate sobre a corrupção na exploração de uma mina na África e sobre a suspeita de que a brasileira Vale já tinha conhecimento da situação antes da eclosão de uma guerra nos tribunais envolvendo um projeto bilionário.

No centro da crise está a mina de ferro Simandou, na República da Guiné, e a parceria da Vale com o bilionário Beny Steinmetz. O empresário já foi condenado em Genebra a uma pena de cinco anos de prisão e uma multa de 50 milhões de francos suíços por corrupção de funcionários públicos estrangeiros e falsificação de documentos, no caso envolvendo a mina africana.

A empresa brasileira entrou com um processo contra o magnata, que acusa a mineradora de ter conhecimento da situação na qual estava se envolvendo.

Steinmetz teria organizado a transferência de pelo menos US$ 8,5 milhões de 2006 a 2012 para garantir o direito de explorar a mina. Para isso, pagou oficialmente US$ 165 milhões ao governo local pela concessão. Mas, 18 meses depois, ele fechou um acordo de parceria com a Vale, no valor de US$ 2,5 bilhões.

De acordo com a promotoria pública de Genebra, a partir de 2005, o executivo se envolveu em um "pacto de corrupção" com o ex-presidente da Guiné, Lansana Conté, que esteve no poder de 1984 a 2008, e sua quarta esposa, Mamadie Touré. A Vale nunca foi denunciada.

A meta desse suborno era a de retirar a mina da Rio Tinto e garantir que a Beny Steinmetz Group Resources (BSGR) ficasse com uma das maiores reservas de minério de ferro do mundo. A acusação aponta que, em 2008, a BSGR teria aproveitado das últimas horas de vida do ditador para obter a concessão da jazida de minério de ferro.

Mas, em 2011, o primeiro presidente democraticamente eleito da Guiné, Alpha Condé, iniciou uma auditoria dos contratos de mineração, o que acabou levando à suspeita sobre Simandou.

Foi apenas em abril de 2014 que a Vale afirmou publicamente que existia uma suspeita de corrupção. Numa nota aos acionistas, a mineradora comunicou sobre a decisão do novo governo da Guiné de revogar o direito de exploração de Steinmetz.

De acordo com o comunicado, a Vale adquiriu sua participação na exploração "somente após uma extensiva due diligence realizada por profissionais especializados e com base em declarações e garantias de que a BSGR teria adquirido todos os direitos minerários de forma legal e sem qualquer promessa ou pagamento indevidos ou corruptos".

"A Vale veementemente condena o uso de práticas de corrupção, reitera o seu compromisso com a governança corporativa transparente e está considerando seus direitos legais e opções" , completou.

Naquele mesmo ano, a Vale entrou com processo no Tribunal de Arbitragem Internacional, em Londres. A mineradora venceu o caso em 2019 e o empresário israelense foi obrigado a pagar US$ 2,2 bilhões em indenização. O tribunal apontou que o empresário omitiu informações da Vale ao ingressar na sociedade, entre elas o pagamento de propinas.

Reunião em Paris

Agora, um documento que faz parte das informações prestadas pela Vale para a corte em Londres apresenta a transcrição de notas manuscritas sobre um encontro ainda 12 de abril de 2013, em Paris.

O documento seria de Jonathan Kelly, da Cleary Gottlieb e advogado da Vale em Londres. Estava também presente outro advogado da empresa, Jeffrey Lewis. Scott Horton, advogado do Governo da Guiné foi um dos principais nomes na reunião, que ainda contou com Clóvis Torres, atual presidente de Furnas e que, naquele momento, era o diretor jurídico da Vale.

Para completar, o encontro foi acompanhado por Steven Fox, da Veracity Worldwide - uma empresa americana de investigação.

Em 2015, num outro processo nos EUA, a Vale declarou que a empresa destruiu todos os documentos dos executivos envolvidos na aquisição dos direitos de Simandou.

Mas, no documento de 2013, a informação contida revela um detalhamento de um plano sobre como lidar com os dados sobre o caso.

De acordo com os argumentos apresentados pelos advogados de defesa de Steinmetz à corte britânica, ao iniciar o encontro em Paris, Scott Horton abre a reunião dizendo que estava ali para compartilhar dois anos de investigações.

Os advogados da Vale foram alertados que haveria uma restrição no uso das informações e que "não devem ser compartilhadas com clientes sem autorização expressa". "A não ser que diga que pode usar, não pode", aponta a nota, numa referência a uma fala de Horton. Ele ainda orienta: "tomem notas, mas não as coloquem em e-mails".

Há ainda uma menção direta ao diretor da Vale, Clovis Torres. "CT está de acordo em receber a info + não compartilhar com a Vale".

No mesmo encontro, porém, Horton sugere que o problema do governo africano é com Steinmetz, e não com a Vale, chegando a citar "nível alto de confiança" e "integridade".

Num dos trechos, há ainda uma sinalização de que o governo da Guiné trataría a Vale como uma vítima, e não parte do esquema de corrupção.

"GoG (Governo da Guiné) tentará ajudar a Vale em relações públicas ao confirmer explicitamente no tempo adequado que a Vale é uma vítima, nunca envolvida em corrupção", diz a nota da reunião de 2013.

No mesmo documento há ainda um trecho no qual se fala de uma proposta de união da Guiné com a Vale. «Defesa conjunta GoG + Vale".

Num outro trecho do argumento dos advogados do israelense, eles sustentam que a Vale "recebeu então uma apresentação das provas que aparentemente apoiavam e substanciavam as alegações contra a BSGR".

"Um tema importante da reunião parece ter sido se e quando a Vale deveria notificar a BSGR sobre a rescisão do acordo de joint venture", apontaram os advogados.

A defesa do israelense ainda insiste que a Vale "não era inocente" e que, por ser uma empresa "sofisticada e experiente", tinha a capacidade de fazer uma coleta de informações suficiente antes de entrar em uma joint-venture.

Procurada pela coluna para comentar o documento e seu conteúdo, a empresa brasileira optou por não dar detalhes.

"A Vale não comentará sobre assuntos que estão no presente momento sendo objeto de julgamento na ação por fraude que promove perante a corte de Londres contra Benjamin Steinmetz e outros envolvidos", disse a mineradora, por email.

"A Vale reitera enfaticamente que Benjamin Steinmetz tem inventado versões fantasiosas e feito afirmações mentirosas contra a empresa em relação ao caso de Simandou, em uma clara estratégia de tentar inverter papéis e assim fugir de suas responsabilidades em indenizar a companhia", completou.

Em outro trecho do mesmo documento, o advogado da Vale nos EUA, Jeffrey Lewis, ainda é informado sobre a existência de investigações nos Estados Unidos e Horton revela ter conhecimento de investigação do FBI sobre a corrupção na Guiné, com detalhes sobre o material obtido.

O caso só se tornou conhecido três dias depois, quando um dos suspeitos foi preso nos Estados Unidos.