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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Governo é denunciado no STF por usar Disque 100 para perseguição política

Jair Bolsonaro e Damares Alves em solenidade no Palácio do Planalto - Frederico Brasil/Futura Press/Folhapress
Jair Bolsonaro e Damares Alves em solenidade no Palácio do Planalto Imagem: Frederico Brasil/Futura Press/Folhapress

Colunista do UOL

09/02/2022 17h25

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Professores e profissionais de saúde denunciam a instrumentalização do Disque 100 pelo governo federal para perseguição política e para a adoção de uma política de vigilância. Numa ação apresentada nesta semana no Supremo Tribunal Federal, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS) alertam para abusos e pedem medidas urgentes por parte do Judiciário.

A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental alega que as iniciativas do governo federal estão em total desacordo com a jurisprudência do STF e que o instrumento criado para registro de violações foi convertido em aparato de patrulhamento ideológico.

De acordo com os grupos, o canal originalmente criado para receber denúncias de abusos de direitos humanos passou a ser usado para constranger profissionais de educação, demais cidadãos e instituições com visões diferentes às do governo federal em questões como vacinação, identidade de gênero e orientação sexual.

"Conceitos de direitos humanos vêm sendo subvertidos de forma a permitir a execução de uma política de vigilância, perseguição, discriminação e repressão, sobretudo nos campos da Educação e da Saúde", diz a ação, obtida com exclusividade pela coluna. A medida foi realizada em articulação com ativistas e operadores de direito que atuam na defesa dos direitos humanos.

Criado em 1997, o Disque 100 é hoje um serviço público vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Cabe à pasta receber, analisar e encaminhar denúncias de violações de direitos. A sistematização das denúncias é também considerada como um instrumento para que gestores públicos, sociedade civil e pesquisadores possam monitorar a situação dos direitos humanos no país. "No entanto, o canal foi reformulado no governo Bolsonaro", acusam.

Uma das queixas se refere à iniciativa do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos de editar uma nota técnica em que afirma ser uma violação de direitos humanos a exigência de comprovante de vacina para acesso a locais públicos ou privados.

"O Disque 100 foi disponibilizado para recebimento desse tipo de denúncias, em mais uma ação de combate às medidas de contenção da pandemia de Covid-19. Mais uma vez, a instrumentalização do Disque 100 desrespeita decisão do Supremo, que afirmou a legalidade de restrições indiretas para ampliação da cobertura vacinal no país", apontam as entidades.

No governo e entre aliados da base radical do bolsonarismo, uma campanha é realizada nas redes sociais contra o comprovante vacinal, alegando que se trataria de uma restrição de direitos. Na Europa e em dezena de países, o instrumento é amplamente utilizada, enquanto na França estudos indicaram que as medidas salvaram 4 mil vidas e geraram uma economia bilionária aos cofres públicos.

Ao incluir o tema no Disque 100, as entidades apontam que o governo incita a hesitação vacinal e a perseguição de profissionais de saúde.

Ideologia de gênero

Outra queixa na ação se refere às mudanças nos protocolos do Disque 100 para a inclusão da expressão "ideologia de gênero" como motivação para violação de direitos humanos. Para os grupos que lideram o processo, tal medida tem como objetivo estimular denúncias contra profissionais de educação que abordem a questão nas escolas.

Discurso criado nos anos de 1990 por setores conservadores da Igreja Católica, a chamada "ideologia de gênero" se constituiu em resposta reacionária contra o avanço dos direitos das mulheres e da população LGBTQIA+ no plano internacional.

Uma das preocupações das entidades que apresentaram a ação é com a possibilidade de que órgãos policiais sejam acionados a partir das informações recebidas pelo Disque 100 contra profissionais de educação.

"Isso aconteceu em dezembro de 2021 no município de Resende (RJ), onde a direção da Escola Municipal Getúlio Vargas recebeu intimação da Polícia Civil devido a uma denúncia anônima por supostamente expor os alunos a "conceitos comunistas" e a "ideologia de gênero", descreve os autores da ação.

Outro caso envolveu uma professora de filosofia da escola estadual Thales de Azevedo em Salvador (BA) por abordar questões de gênero, racismo e sexualidade.

"O Disque 100 foi instrumentalizado para burlar jurisprudências estabelecidas pelo STF, tanto em relação à abordagem de gênero na educação como em relação à vacinação", afirma a advogada e ex-procuradora federal Deborah Duprat, uma das representantes das entidades na ação. O processo conta também com a representação do grupo de advogados da Rede Liberdade.

"Para piorar, essas denúncias são enviadas a órgãos policiais sem que se decline o crime que se deve apurar. Com isso, o aparato policial é utilizado para gerar medo e inibição de práticas absolutamente legais e constitucionais, endossadas por esse Supremo Tribunal Federal", analisa a advogada.

Os grupos que recorreram ao STF apontam que o próprio Supremo considerou inconstitucionais leis municipais e estaduais que proibiam a abordagem de conteúdos ligados a gênero e sexualidade nas escolas, que se apoiavam na categoria "ideologia de gênero". "O STF também determinou ser dever do Estado brasileiro abordar a igualdade de gênero na escola como forma de prevenir a violência doméstica e o abuso sexual de crianças e adolescentes", destacam.

Homofobia

Outro elemento da ação se refere ao funcionamento atual do Disque 100 que, segundo os autores do caso, invisibiliza os dados de violências contra pessoas LGBTQIA+. "Da forma como está estruturado, fica impossível obter dados sobre violência motivada por homofobia e transfobia", disse Marco Aurélio Máximo Prado, professor da UFMG e coautor de um estudo sobre as mudanças no serviço.

"Essas informações são essenciais para que os estados e municípios elaborem políticas de enfrentamento a esses casos", explica.

Em abril de 2021, a pasta liderada por Damares Alves publicou um manual no qual classificava as notificações recebidas pelo Disque 100. "Nesse documento, foi incluída entre os indicadores de motivação das violações o item "Em razão da orientação sexual / ideologia de gênero", apontam as entidades.

"Segundo estudo realizado por pesquisadores da UFMG, o Manual promove um apagamento das violências de caráter homofóbico e transfóbico, devido ao termo vago "orientação sexual" e por dividir espaço com a questionada categoria "ideologia de gênero", dizem.

Por esses motivos, as entidades alertam que o Disque 100 "constitui mais uma das medidas adotadas pelo governo Bolsonaro que atacam ações e políticas comprometidas com a igualdade de gênero e a diversidade sexual no país".

Diante das denúncias, os autores da ação solicitam que o STF determine a remoção da expressão "ideologia de gênero" do manual, a inclusão da categoria identidade de gênero e de indicadores de violações de direitos contra a população LGBTQIA+.

Pede-se também a suspensão da nota técnica que questiona a obrigatoriedade do Certificado Nacional da Vacina e da vacinação infantil, além da exigência de que o encaminhamento de denúncias do Disque 100 aos órgãos policiais só aconteça na hipótese de crime tipificado em lei, constando o tipo penal específico.