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Jamil Chade

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Ao som dos tambores da guerra, erguem-se as cortinas do mundo pós-pandemia

Soldados russos usam uniformes do Exército Vermelho da 2ª Guerra Mundial para participar do desfile militar na praça Vermelha, em Moscou - Kirill Kudryavtsev/AFP - 7.nov.2015
Soldados russos usam uniformes do Exército Vermelho da 2ª Guerra Mundial para participar do desfile militar na praça Vermelha, em Moscou Imagem: Kirill Kudryavtsev/AFP - 7.nov.2015

Colunista do UOL

23/02/2022 22h25

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Nos círculos diplomáticos internacionais, não restam dúvidas: estamos diante de uma tentativa deliberada de redefinição da ordem mundial. Ao reconhecer um suposto novo país dentro do território da Ucrânia e ensaiar uma invasão sem precedentes, em pleno século 21, a Rússia rasga a Carta das Nações Unidas, enterra os princípios da segurança coletiva na Europa, coloca a Otan em um dilema existencial e, no fundo, abre as cortinas para a inauguração do mundo pós-pandemia.

Se uma guerra total ainda pode ser evitada, os acontecimentos dos últimos dias revelam que o admirável mundo novo pode estar nascendo. Mas, assim como ecos do passado que muitos acreditavam que não se repetiriam, esse primeiro ato é forjado por meio de ameaças e do poder bélico.

Nesses altos círculos diplomáticos e ainda em cenários idílicos à beira do Lago de Genebra, embaixadores ocidentais visivelmente perdidos tentam entender os próximos passos de Vladimir Putin. Alguns acham que ele é um gênio. Outros, apenas que se trata de um homem obcecado pelo poder e por reconstruir um império.

Outra interpretação é ainda de que Putin quer sua Rússia reconhecida como uma superpotência e, para isso, precisa chamar a atenção internacional sobre sua capacidade de ditar o destino da segurança da Europa e de seu abastecimento de energia.

Quando o império soviético ruiu, Putin presenciou tudo de seu posto de espião da KGB, em Dresden. Para seus biógrafos, aquela derrota forjou o homem que lideraria a Rússia a um novo caminho, no século 21.

De fato, no Kremlin, a ação na fronteira com a Ucrânia não é uma novidade. Em conflitos esquecidos, crises congeladas e protetorados ilegais, a Rússia vem agindo para criar uma zona tampão e áreas de influência.

O motivo, segundo Moscou, é simples: a Otan havia prometido nos idos dos anos 90 que não se lançaria numa ampliação. A Guerra Fria tinha sido concluída, muito mais pela derrota do comunismo que pela vitória do capitalismo. E o Ocidente ignorou sua palavra, avançando sobre o que um dia havia sido a área de influência de Moscou.

Hoje, depois de duas décadas no poder e sem qualquer previsão de um fim de seu reinado, Putin sabe que está agindo num momento de múltiplas fraquezas por parte do Ocidente. Em muitos desses países a democracia está sendo colocada em dúvida, a pandemia revelou que várias dessas supostas sociedades desenvolvidas tinham pés de barro e as divisões são profundas.

Americanos e europeus se apressaram em denunciar o gesto russo, alegando que Moscou estava violando princípios básicos do direito internacional, como integridade territorial, soberania e independência. Tudo isso é verdade e o Ocidente entra na sala com o dedo em riste. Mas sem o mesmo impacto.

Profundamente desgastadas e sem moral por anos de hipocrisia, Washington e as capitais europeias descobrem que o centro do poder sofreu um abalo sísmico.

A invasão do Iraque, a guerra na Líbia, a petulância colonial, a incapacidade de conquistar a paz por onde seus soldados pisaram e uma desigualdade crescente dentro de suas próprias sociedades passaram a ser heranças insuportáveis para um Ocidente que se apresenta como aquele que vai assegurar o estado de direito.

A arrogância na política internacional - assim como na vida - é um dos grandes erros estratégicos. E, no caso da relação entre o Ocidente e a Rússia, esse também foi o caso. Quando americanos e europeus optaram por humilhar Moscou, criaram ali cicatrizes incapazes de se fechar.

Mais de 30 anos depois, um novo mundo tenta nascer, nas sombras de um império que ruiu. Putin, com uma repressão violenta contra qualquer dissidente e com uma aliança com Pequim, quer voltar a contar no planeta. Pela força criminosa, se necessário.

A soberba de líderes míopes levou o Ocidente a acreditar na tola tese do fim da história. Décadas mais tarde, os ecos do colapso do império soviético continuam a fazer o chão tremer. E, junto com esse terremoto e ao som dos tambores da guerra, o destino da nova ordem internacional também é questionado.