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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Ignorando Ucrânia, Damares usa tribuna da ONU para fazer campanha eleitoral

Damares Alves no Conselho de Direitos Humanos da ONU - Fabrice Coffrini / AFP
Damares Alves no Conselho de Direitos Humanos da ONU Imagem: Fabrice Coffrini / AFP

Colunista do UOL

28/02/2022 10h16

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A ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos, Damares Alves, fez um discurso nesta segunda-feira na abertura do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Mas, ao contrário de dezenas de autoridades, se limitou a transformar sua participação numa apresentação de programas do governo de Jair Bolsonaro.

A ministra não citou em nenhum momento o conflito armado de forma explícita, e apenas insistiu que o presidente Jair Bolsonaro defende a paz "em todos os países do mundo". Ignorando o gesto de "arminha" do presidente e seu discurso de ódio, ela destacou como "o presidente sempre promove a paz".

Ao final do discurso, o UOL questionou a ministra sobre sua avaliação da guerra na Ucrânia. Ela apenas indicou que não falaria com a reportagem. Ao ser questionada sobre o motivo da recusa, ela ameaçou: "chamo a segurança".

Damares permaneceu por menos de duas horas na sala da ONU e sequer esteve presente quando a alta comissária de Direitos Humanos, Michelle Bachelet, e o secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, tomaram a palavra. A ministra só retorna ao Brasil na quinta-feira.

Sua participação na ONU ocorreu num momento de tensão internacional e quando a própria agenda do Conselho se volta à guerra e suas consequências. Dezenas de ministros tomaram a palavra antes e depois de Damares, com amplo foco na crise ucraniana.

Sua tentativa de organizar encontros bilaterais ainda foi afetada, já que muitos dos ministros europeus não viajaram até Genebra, justamente por estarem lidando com a crise na Ucrânia. Uma recepção que estava sendo organizada pela missão do Brasil com países de língua portuguesa também foi cancelada, por não haver clima para uma festa.

Damares, ainda assim, conseguiu manter alguns dos encontros, como com a delegação dos EUA e Portugal, além de uma reunião com a comunidade brasileira em Genebra.

Diante do Conselho, no lugar de debater a guerra, ela optou por apresentar uma lista de programas, medidas e iniciativas do governo no que se refere à pandemia, racismo, a defesa de medidas contra o aborto e a defesa das minorias, entre elas os indígenas.

Ela ainda teve tempo para explicar aos países as medidas sobre a transposição do Rio São Francisco, iluminação pública e projetos para defender a floresta, crianças e mulheres.

Damares ainda insistiu que os mecanismos de combate à tortura no país estavam em funcionamento, ignorando o fato de que tal situação apenas ocorre por conta de liminares na Justiça.

Ela ainda destacou a aliança internacional que o Brasil lidera com mais 30 países e que determina que não "há no direito internacional qualquer respaldo para se valer do aborto para planejamento familiar".

Ministra é criticada por sociedade civil

O discurso de Damares deixou ativistas e ongs em choque. "Causa espanto que uma alta representante do governo ocupe a tribuna da ONU em meio a uma das maiores crises militares e geopolíticas da História recente para fazer uma mera defesa de sua gestão doméstica, sem nem citar nominalmente a guerra na Ucrânia", disse Camila Asano, diretora de programas da Conectas Direitos Humanos.

"Após a visita desastrosa de Bolsonaro ao presidente russo Vladimir Putin às vésperas do estalar da guerra, esperava-se um posicionamento inequívoco para a comunidade internacional, ainda mais considerando que Brasil votou a favor da resolução do Conselho de Segurança dias atrás. Com seu discurso, a ministra Damares coloca a diplomacia brasileira em uma posição de ainda maior irrelevância internacional", declarou.

Ela também foi criticada pelo conteúdo de seu discurso. "A ministra defende, por exemplo, que o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura estaria em pleno funcionamento, quando toda a sociedade civil acompanhou de perto as tentativas de desmonte e interferência no órgão durante a gestão Bolsonaro, inclusive com tentativa de exonerar seus peritos independentes e dificultar seu trabalho", disse Camila Asano.

"Em visita recente ao Brasil, o próprio Subcomitê de Prevenção e Combate à Tortura da ONU exortou o país a cumprir com suas obrigações internacionais e abandonar sua decisão de desmantelamento do mecanismo", explicou.

Segundo ela, "a insistência na defesa do Consenso de Genebra, uma aliança internacional contra o aborto, reforça o alinhamento do Brasil a países ultraconservadores como Rússia, Arábia Saudita, Uganda, Iraque e Hungria".

"Criado por Brasil e Estados Unidos, o acordo já foi abandonado pela gestão do presidente Joe Biden, deixando o país ainda mais isolado na promoção da agenda ultraconservadora contra direitos sexuais e reprodutivos".

Para Paulo César Carbonari, da coordenação do Movimento Nacional de Direitos Humanos, que acompanhou a intervenção de Damares Alves, "ela transformou o Conselho da ONU num palanque para propagandear feitos do governo em direitos humanos".

"Mas não foi honesta, pois escondeu os desmontes que vem realizando. Vergonhoso e inaceitável que um foro internacional sirva para alimentar a ação de apoiadores", disse. Carbonari também criticou o fato de Damares não ter feito uma condenação explícita às guerras, particularmente na Ucrânia. "Dizer que o Brasil sempre defende a paz não é suficiente neste momento", completou.


Damares é acusada de desmonte de programas de direitos humanos

Apesar de seu discurso, Damares visita a ONU num momento de duras críticas por parte das entidades internacionais contra sua gestão.

No início do mês, por exemplo, o governo foi criticado pelos peritos da ONU que avaliam o desmonte dos mecanismos de combate contra a tortura no país. O grupo de especialistas visitou o Brasil para questionar autoridades sobre as propostas do Executivo que estão enfraquecendo o monitoramento da situação no país.

Numa nota emitida, os peritos fizeram um apelo para que o Brasil cumpra suas obrigações internacionais e reforce seus mecanismos nacionais de prevenção contra a tortura. Segundo a ONU, o país tem a terceira maior população de pessoas privadas de liberdade do mundo, com mais de 750 mil detentos e prisões superlotadas. "Pedimos ao Brasil que abandone sua decisão de desmantelar seu mecanismo nacional de prevenção à tortura", disse Suzanne Jabbour, que chefiou a delegação que visitou o país.

"Os mecanismos preventivos do Brasil estão enfrentando desafios críticos. Apesar da falta de recursos e apoio, eles vêm fazendo um trabalho notável", disse a perita. A delegação também se reuniu o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), órgão de vigilância da prevenção da tortura no país, que está sendo alvo de uma tentativa de desmonte por parte do governo.

Outra acusação que sofre o Brasil se refere à violência policial. Há poucas semanas, relatores da ONU criticam o governo por "fracassar" diante da violência policial, cobraram respostas, denunciaram o "aumento exponencial" de operações durante a pandemia e alertaram que o Brasil está violando tratados internacionais e mesmo a Declaração Universal de Direitos Humanos.

Numa carta enviada ao governo brasileiro no dia 13 de dezembro de 2021 e obtida pelo UOL, os relatores da ONU apontam que têm recebido informações sobre uma ação "sistemática" de violência da polícia, principalmente nas favelas do Rio de Janeiro. Elas resultaram em "diversas mortes, incluindo o assassinato desproporcional de afro-brasileiros".

A carta assinada pelos relatores TendayiAchiume, Dominique Day, Morris Tidball-Binze NilsMelzerdeixa claro o mal-estar dos órgãos internacionais diante da violência. "Durante a pandemia, o número de operações policiais, assim como sua letalidade e violência, aumentou exponencialmente", destacou o documento.

Os números, segundo eles, revelam que o incremento de mortes por operações policiais vinha ocorrendo desde 2018. Naquele ano, elas aumentaram 19,6% em comparação a 2017, e 11% das mortes violentas intencionais no país foram o resultado de embates com as autoridades policiais. "75,5% das vítimas desses encontros violentos foram afro-descendentes", destaca.

Mas o processo ganhou força no primeiro ano de Bolsonaro no poder. "Desde 2019, as operações policiais se tornaram mais intensas, com o aumento da brutalidade e da violência utilizadas pelas forças policiais", diz a carta.

A Alta Comissária para Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, apresentou um relatório no qual cita o caso de um jovem que foi assassinado no complexo Salgueiro em maio de 2020. Em agosto de 2021, o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial também abordou as alegações de que a polícia realizou duas operações violentas nas favelas do Rio de Janeiro, em violação a uma decisão do Supremo Tribunal Federal de junho de 2020 que proibiu temporariamente as operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro durante a duração da pandemia.

O governo Bolsonaro será ainda denunciado, nas próximas semanas, por graves violações de direitos humanos no que se refere aos povos indígenas.