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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Meus encontros com Gorba: conversas sobre geopolítica e poder

O ex-líder da União Soviética Mikhail Gorbatchev e o jornalista Jamil Chade em uma conversa em um trem entre Genebra e Friburgo, na Suíça, em 2004 - Jamil Chade/UOL
O ex-líder da União Soviética Mikhail Gorbatchev e o jornalista Jamil Chade em uma conversa em um trem entre Genebra e Friburgo, na Suíça, em 2004 Imagem: Jamil Chade/UOL

Colunista do UOL

30/08/2022 18h39

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"Não se pode acreditar cegamente nos EUA". Quem me confessou isso certa vez foi um dos líderes mundiais que modificou de forma dramática sua relação justamente com a Casa Branca e, diante de sua decisão, toda uma era na história chegou a um fim.

Trata-se de Mikhail Gorbatchev, último presidente da URSS e que morreu hoje aos 91 anos.

Ao longo dos últimos anos, estive com ele em cinco ocasiões, sempre em longas conversas sobre geopolítica. Ignorado em sua casa e nem sempre respeitado no Ocidente, ele não escondia sua frustração em não desempenhar um papel maior no cenário internacional.

Uma das conversas ocorreu em 2013. Meu segundo filho tinha acabado de nascer e ainda estava na maternidade. Falando pausadamente, com certa dificuldade para se mover, Gorbatchev pensava antes de dar cada uma das respostas. Em seu diálogo, misturava nostalgia, decepção e a rejeição por qualquer tentativa de deixar uma pergunta sem resposta.

Naquele encontro, ele terminou abrindo um livro com a foto de Ronald Reagan e suspirou. "Ah, esse foi um momento fundamental no mundo", disse.

Alguns anos antes, quando eu lhe disse que precisava falar com ele sobre os 20 anos da queda do Muro de Berlim, ele teve uma ideia: eu iria pegar um trem ao seu lado, entre Genebra e Friburgo. Conversaríamos por mais de uma hora enquanto o trem atravessava a Suíça e sua fala apenas era interrompida por sua surpresa diante de cenários estonteantes.

Depois de tudo que tinha a dizer, foi a vez dele lançar perguntas: "como é Lula como presidente?". Naquele momento, ele me alertou: o mundo está cada vez mais perigoso e nem na Guerra Fria os riscos foram tão elevados.

Confira alguns trechos das conversas, mantidas desde 2004. Nelas, ele fala do papel internacional do Brasil, meio ambiente, Cuba, Síria, leis antigay na Rússia, Conselho de Segurança e tantos outros temas:


Nos últimos anos, uma das novidades no cenário geopolítico internacional é a criação dos Brics. O sr acredita que esse seja um bloco com interesses comuns ou apenas uma ficção?

Não é uma ficção. Quando o Brasil fala, o mundo hoje escuta. Quando a Rússia, Índia e China falam, eles têm um peso. Trata-se de uma aliança importante para contrabalancear outros poderes. É uma espécie de equilíbrio que se estabelece em relação a outros polos de poder. É importante que o bloco tenha sucesso.

Como o sr. vê os protestos nas ruas no Brasil, num país democrático?

RAs pessoas estão pedindo mais. O estado precisa ouvir sua população quando ela sai à rua. Ela está dizendo que quer ser ouvida. Governos que não escutam suas populações devem se preparar para ter muitos problemas. Muitos políticos me odeiam porque eu sempre sai em defesa daqueles que saem às ruas. No Brasil, isso vai continuar se o governo não agir.

Como o sr. vê a pressão econômica entrando em conflito com a preservação ambiental, principalmente em regiões como na Amazônia?

A floresta precisa ser preservada. Mas, para isso, é necessário vontade política. Estamos vendo em muitos lugares do mundo mudanças climáticas significativas e isso não será um problema no futuro, mas sim no presente.

A URSS por anos apoiou o regime cubano. O que o sr. acredita que ocorrerá em Havana?

Só o tempo dirá qual o futuro de Cuba. Sempre foi minha posição de que não podemos dar aulas para, por exemplo, a China sobre o que deve ser feito. É um país com uma longa história e que contribuiu muito para a humanidade. A China terá de lidar com os mesmos problemas que nós na Rússia enfrentamos em nossa transição. Em Cuba, eles são cabeças-duras. É um país com uma posição na comunidade internacional e é respeitado. E se alguém tentar ditar ou colocar demandas injustas sobre Cuba, não vai funcionar. Vamos olhar e ver o que ocorre. Fidel Castro é muito influente ainda em Cuba e acho que haverá mudanças, mas cabe a eles decidirem e Cuba tem muitos amigos ainda. Espero que normalizem suas relações com os EUA. Mas isso depende mais dos EUA que de Cuba. Muitos problemas que vemos la são problemas ainda herdados da Guerra Fria e dos erros que foram feitos la. Ainda não os superamos completamente.

Até que ponto relações pessoais entre líderes é fundamental para resolver crises internacionais?

O fator humano é muito importante, principalmente nos processos democráticos que estão ocorrendo pelo mundo. Nos últimos 20 anos, muitos ditadores deixaram o poder e isso abriu oportunidade para que haja aberturas, trocas. E esse fator humano é essencial para o diálogo internacional. Os líderes precisam de novos caminhos para abrir diálogos. Lembro do tempo que a Reunificação da Alemanha era urgente. Margaret Thatcher era contra. A França também era contra, mas eles tinham outra forma de dizer isso. Diziam: "Gostamos tanto dos alemães que queremos que tenham dois estados". Para URSS e EUA, era mais complicado. Estávamos discutindo.

Mas existiam questões, como Otan e todas outras coisas que eram vistas de forma bem diferente. A posição da URSS até quase o final era de que a Alemanha não deveria ser reunificada. Mas chegamos ao final a um acordo de que sim e que o país decidiria de que lado iria querer ficar. Hoje, dizem que Gorbatchev vendeu a Alemanha Oriental muito barato. A reunificação ocorreu quando ocorriam muitas coisas dentro da URSS e no Leste Europeu.

Além disso, confiávamos no povo alemão. Pensamos: "muito bem, muita coisa ocorreu na história da Alemanha e a nova geração provou que poderia viver de forma democrática. Porque digo isso: porque estávamos falando sempre entre os líderes. Brigamos, sim. Tivemos visões diferentes. Mas, no final, todos entraram em um acordo. Era possível conversar. O que foi decisivo foi a confiança mútua que construímos entre os líderes.


Como o sr. avalia as leis anti-gay na Rússia?

Existem muitos grupos que querem viver de sua forma. São coisas que, em outros países, já foram decididas há vários anos. Mas não existe ainda na Rússia um consenso e existe uma parte da população que acredita que isso pode influenciar os jovens no caminho errado. Não se pode acelerar os processos numa sociedade. Não se pode comandar isso.

A paralisia do Conselho de Segurança diante da guerra na Síria não é frustrante?

Não posso acreditar que não está ocorrendo nada no Conselho. A ONU tem a primeira responsabilidade pela paz. Também não posso confiar e seria inocente de minha parte achar que podemos ter um ataque cuidadoso e que só atingiria áreas específica. Ao mesmo tempo, sei que Obama não é o tipo de pessoa que aceitaria qualquer coisa. E continuo achando isso dele.

Mas não é a Rússia quem está bloqueando uma ação do Conselho?

Eles bloquearam uma decisão que era uma má decisão. O direito de vetar uma má decisão é algo positivo. O veto não foi inventado por pessoas estúpidas. Não são decisões banais. Mas sim sobre a vida de seres humanos. Alguns acreditam que as armas são a solução. Eu não acredito nisso.