Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Carta para Rosa Weber: a democracia e nosso futuro estão ameaçados
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Esta é parte da versão online da newsletter do Jamil Chade enviada ontem (10). Na newsletter completa, apenas para assinantes, o colunista relata ainda que a ONU acendeu um sinal de alerta máximo e se preocupa com o silêncio do governo brasileiro sobre a violência política, com casos de morte, que marca a campanha eleitoral de 2022. Quer receber antes o pacote completo, com a coluna principal e mais informações, no seu e-mail, na semana que vem? Clique aqui.
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Prezada ministra Rosa Weber,
Na próxima segunda-feira, dia 12, a senhora assume a presidência do Supremo Tribunal Federal, num dos momentos mais críticos de nossa história repleta de momentos críticos. Sob ataques por parte do Executivo, o Poder Judiciário será, sem dúvida, uma peça chave da definição de nosso futuro.
Desta vez, não escrevo minhas cartas da distante e pacata Genebra. Nesta semana, desembarquei em São Paulo e, diante de uma sociedade angustiada com seu destino, me deparei com uma pergunta que me martela há tempos. Afinal, o amanhã é futuro ou é presente?
Acho que a primeira vez em que essa questão me surgiu foi quando eu estava numa rua do Cairo que dava acesso à Praça Tahrir, ainda na parte controlada pela ala que lutava pelo fim do regime de Hosni Mubarak.
A capital egípcia, naqueles dias, tinha se transformado em palco de um confronto sangrento, com homens montados em camelos abrindo a multidão com chicotes nas mãos, caças que sobrevoavam nossas cabeças e o cheiro da morte. A resistência a um dos governos militares mais poderosos da região e amplamente financiado pelos EUA não mantinha sequer um arsenal rudimentar.
A sociedade egípcia tinha passado décadas sob o rígido controle de um Exército que, de fato, garantia o monopólio do uso e da posse de armas. Mas, num beco, entendi que ali estavam em busca do significado da palavra "amanhã".
Um grupo de homens e garotos havia construído uma catapulta e, orgulhosamente, a usava para defender aquela nova fronteira entre a liberdade e a ditadura contra tanques blindados e soldados do ditador.
Era uma guerra desigual. Um lado pensava que estava no século XXI. O outro, com armas medievais e delírios de liberdade, lutava para que o século XXI chegasse.
Mas, quando minha surpresa diante daquela cena foi substituída pela compreensão, me dei conta de que a arma era feita com um poste de luz que havia sido tombado e uma cesta de frutas de supermercado numa de suas pontas.
A engenhoca lançava pedaços de paralelepípedos que tinham sido arrancados das ruas com as unhas daquelas pessoas. Vitrúvio jamais teria desenhado aquele pedaço de utopia com tanta esperança. Ali, lutavam pela democracia. Naquele beco, o amanhã não era o futuro. Era presente.
Eu, certo de que vinha de uma democracia consolidada e de que essa era uma luta de nosso passado, observava e escrevia sobre aqueles atos com uma arrogância indesculpável.
Como eu imaginaria que, dez anos depois, estaríamos buscando nossas armas para defender o que pensávamos que estava em nossas certidões de nascimento? Naqueles dias no Cairo, a ideia de que nossa democracia seria colocada em risco poderia parecer tão absurda como a de que um defensor da ditadura militar e de torturadores seria um dia eleito presidente.
Agora, sei que a nossa Praça Tahrir está em cada árvore que tomba em silêncio numa floresta, em cada casal que em silêncio solta a mão na rua para evitar a violência, em cada escritora que em silêncio busca outras palavras menos polêmicas em seu texto para manter a renda de sua família.
Neste ano fui alvo de ameaças de morte por parte justamente daqueles grupos que muitos de nossos parentes que nos amam ajudaram a colocar no poder. Quando eu confrontei alguns deles com essa informação, o que eu fiz foi justamente tentar convidá-los a despertar o afeto, não constrangê-los. Tentei trazer para nossa casa, nossa mesa de jantar, o que significam nossas decisões. Mas enquanto abro a mala aqui no Brasil, eu volto a me fazer a mesma pergunta. O amanhã é futuro ou presente?
Ministra,
A senhora assume o STF num momento em que descobrimos que nada é inevitável. O progresso social está sendo desfeito, e a caminhada democrática, asfixiada num porão escondido em alguma portaria no Diário Oficial. Não sou eu quem diz isso. Um dos principais institutos europeus, o V-Dem, na Suécia, nos conta que, entre 2020 e 2022, regredimos 30 anos no avanço democrático no mundo. Hoje, apenas 13% da população mundial vive o privilégio de se beneficiar de forma integral do sonho da democracia. Uma minoria.
A democracia não é um título que penduramos na parede uma vez conquistada e, nas próximas semanas, essa realidade será testada ao seu limite.
A democracia é uma construção diária e dolorida. Hoje, ela está ameaçada. E, junto com ela, o nosso futuro.
Precisamos construir nossas próprias catapultas, com a Justiça e o estado de direito. Nossas armas para esperançar, e não esperar, não são as de que dispõem aqueles que precisamos enfrentar. A luta é desigual. E, justamente por isso, devemos ser otimistas.
Não anularemos o ódio com mais ódio. No fundo, a democracia é uma promessa. A de que o destino está, em parte, em nossas mãos. Que temos uma voz sobre o nosso futuro. O amanhã não é futuro se ele não for, antes, um presente fincado em uma base sólida de justiça e do estado de direito.
Por isso, senhora ministra, ajude-nos a montar nossa catapulta.
Saudações democráticas
Jamil
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