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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Cinco anos após saída de tropas brasileiras, Haiti vive colapso e violência

Colunista do UOL

12/10/2022 06h17

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Inicialmente prevista para durar seis meses, a missão de militares brasileiros para garantir a estabilidade no Haiti ficou no país de 2004 a 2017. A atuação de mais de 30 mil soldados sempre foi exaltada pelo Exército com exemplo de intervenção que teria colocado em prática um modelo brasileiro de pacificação.

Apenas na primeira década, a operação militar brasileira custou R$ 2,1 bilhões, ainda que 35% desse valor tenha sido reembolsado pela ONU. Após a saída das tropas, a entidade ainda manteve uma equipe reduzida no país até 2019.

Mas, agora, a ONU admite que o país está à beira de um colapso. Tomado por gangues armadas, o Haiti se transformou o país em um campo de batalha, especialmente após o vácuo político deixado pelo assassinato do Presidente Jovenel Moise em 2021.

Apenas em julho deste ano, mais de 200 pessoas foram mortas na capital, como resultado da violência entre grupos armados. Nesta semana, manifestantes entraram em confronto com a polícia, enquanto saques e a violência tomou a conta das ruas.

Diante de um colapso da segurança e do estado, a ONU está pedindo aos governos que reconsiderem a mobilização de forças armadas para ajudar o país a enfrentar mais uma crise humanitária. Mas o debate também expôs uma amarga realidade: 15 anos de operações de manutenção da paz e bilhões de dólares em ajuda não estabilizaram o país.

A proposta de envio de soldados vem uma semana depois que o primeiro ministro haitiano Ariel Henry pediu à comunidade internacional que enviasse uma "força armada especializada", temendo que a violência já tivesse paralisado o país.

Em uma carta de 12 páginas ao Conselho de Segurança e obtida pelo UOL, o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, apoiou a idéia de enviar urgentemente força armada para a Ilha do Caribe. "Considerando a situação extremamente grave, os esforços internacionais para aumentar o apoio à Polícia Nacional Haitiana devem ter como objetivo reduzir a capacidade das gangues armadas de bloquear o acesso e realizar ataques à infra-estrutura estratégica e ameaçar a subsistência das comunidades", escreveu Guterres.

Durante a administração Trump, Guterres e outros estados membros aceitaram a pressão da Casa Branca e reduziram o escopo das missões de manutenção da paz. Em 2017, a ONU chegou a um acordo para cortar o orçamento das Operações de Paz em todo o mundo em 600 milhões de dólares. A redução foi a maior já aplicada pelas Nações Unidas. Mas foi menos do que o pedido da Casa Branca para que os capacetes azuis tivessem uma redução de US$ 1 bilhão em seu orçamento.

Segundo o novo acordo, em vez de um orçamento de 7,9 bilhões de dólares, o total para as operações de paz seria de 7,3 bilhões de dólares. As missões em Darfur, Sudão e na República Democrática do Congo seriam as que mais sofreriam. Mas a pressão foi colocada em cada uma das operações.

A aprovação de um corte ia no sentido oposto do que Guterres havia proposto. Apesar de defender cortes nos gastos da administração da ONU em Nova Iorque e Genebra, o português propôs um aumento nos gastos com os capacetes azuis em mais de 100 milhões de dólares.

Agora, com a nova crise no Haiti, a ideia seria que o Conselho de Segurança das Nações Unidas "reconhecesse" a força. Mas não precisaria autorizá-la.

A proposta de Guterres está dividida em duas fases. A necessidade mais urgente é fortalecer a capacidade da polícia nacional de combater e conter as quadrilhas. A curto prazo, o chefe da ONU propõe que uma força de reação rápida seja destacada sob a liderança de um país e composta de forças de um ou mais países.

O financiamento viria da comunidade internacional. "Caso os Estados membros não dêem um passo adiante com apoio bilateral e financiamento para esta opção, as contribuições sob uma operação das Nações Unidas podem oferecer uma alternativa", escreveu Guterres. "Entretanto, um retorno à manutenção da paz da ONU não era a opção preferida das autoridades".

Esta seria apenas uma primeira fase. Guterres sugere que a missão seria gradualmente transformada em uma força-tarefa policial, à medida que a polícia nacional começasse a restaurar a segurança.


Crise humanitária

Mas, para muitos dentro da ONU, o retorno de uma missão, mesmo sob um novo formato, também deve vir com o reconhecimento de que a estratégia atual de uma resposta humanitária não está funcionando e não é sustentável. Na situação atual, 1,3 milhão de haitianos em breve estarão em estado de emergência.

A Enviada da ONU ao Haiti, Helen La Lime, advertiu que "uma crise econômica, uma crise de gangues e uma crise política convergiram para uma catástrofe humanitária".

Em um relatório interno, a OPAS admite que "o Haiti vem passando por uma crise de segurança devido à violência de gangues armadas em Porto Príncipe e em outras cidades, o que exacerbou a crise humanitária no país".

"As vulnerabilidades atuais incluem desnutrição, deslocados internos, estruturas não funcionais, acesso limitado ou inexistente aos serviços de saúde, escassez de combustível, acesso limitado à água potável e instalações sanitárias e de higiene precárias, entre outras", afirma.

"Estes fatores teriam um impacto sobre a dinâmica do ressurgimento da cólera e sobre a gravidade da doença em pacientes com diarréia aguda". O acesso às áreas afetadas é difícil e, portanto, a avaliação oportuna da situação epidemiológica e a prestação de cuidados de saúde para os casos é complexa", conclui.

O abastecimento de água potável também foi afetado, ampliando o surto de cólera, após três anos sem nenhum caso. Até domingo, havia 32 casos confirmados, 224 suspeitos, e 16 mortes confirmadas.

Martin Griffiths, o chefe da ajuda humanitária da ONU, pediu financiamento de emergência, e adverte que, se a propagação da doença não for controlada, pode levar a "níveis cataclísmicos de desespero para o povo do Haiti".

As gangues bloquearam o principal porto de combustível do Haiti, levando à escassez de gás e diesel, e forçando os hospitais a fecharem.

A crise também levou a uma escassez de alimentos. Na semana passada, La Lime também disse ao Conselho de Segurança da ONU que 2.000 toneladas de ajuda alimentar foram perdidas devido a ataques a armazéns administrados pela ONU. Em conseqüência, 200.000 haitianos poderiam ficar sem alimentos para o próximo mês.

De fato, a diretora executiva do Programa Alimentar Mundial (PMA), Valerie Guarnieri, afirmou que "a situação no Haiti infelizmente atingiu novos níveis de desespero". Com a inflação em nível recorde, 40% do país está confiando na assistência alimentar.