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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Brasil sinaliza volta ao palco internacional em momento de crise mundial

Emmanuel Macron e Lula em Paris - Divulgação/Ricardo Stuckert
Emmanuel Macron e Lula em Paris Imagem: Divulgação/Ricardo Stuckert

Colunista do UOL

31/10/2022 04h00

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Em seu primeiro discurso após a vitória nas urnas, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva afirmou à comunidade internacional"que o Brasil está de volta, que o Brasil é grande demais para ser relegado a esse triste papel de pária no mundo". Lula planeja realizar uma viagem ao exterior, antes mesmo de tomar posse.

Mas o presidente eleito terá um desafio de enormes proporções pela frente: num ano de provável recessão internacional, de guerra, de ameaça nuclear e de colapso climático, Lula terá de voltar a buscar um lugar para o Brasil no mundo.

Se governos democráticos respiraram aliviados neste domingo com o fim da era Bolsonaro e em questão de minutos sinalizaram com um "bem-vindo de volta" ao novo presidente, a recuperação da imagem internacional do Brasil exigirá muito mais que o resultado da eleição. Reconquistar a posição que o país ocupava antes do desembarque da extrema direita não será nem automático e nem óbvio.

Com uma imagem profundamente manchada, o país carregará consigo a partir de agora uma desconfiança permanente. Além disso, em vários dos temas internacionais, a posição deixada pelo Brasil foi ocupada por outros e que não estarão dispostos a ceder poder e protagonismo ao país.

A recuperação da credibilidade internacional passava pelas urnas. Mas ele é apenas o quilômetro zero de um longo caminho.

Num cenário de normalidade institucional, a esperança de parceiros internacionais era de que o governo Jair Bolsonaro passasse a incluir em suas delegações em grandes cúpula em novembro e dezembro membros da equipe de Lula ou até o presidente eleito. Nos anos 90, Fernando Henrique Cardoso chegou a viajar como presidente eleito, sendo apresentado aos demais líderes.

Com a cúpula do G20 em 15 dias na Indonésia e a Conferência do Clima da ONU no Egito na próxima semana, não há qualquer indicação de que o Palácio do Planalto abra espaço para Lula e sua equipe.


Clima será a chave de uma nova diplomacia

Se nos últimos quatro anos o governo de Jair Bolsonaro tomou a decisão de se negar a reconhecer o desafio climático e abrir deliberadamente o espaço para o desmatamento, o preço que o Brasil pagou foi alto. Fundos soberanos passaram a suspender investimentos no país. Já nos fóruns internacionais e na opinião pública no exterior, o Brasil passou a ser visto como parte do problema climático do planeta. Uma espécie de "criminoso ambiental".

Como resultado da ruptura de confiança no Brasil sobre a questão do desmatamento, o país hoje está sob a ameaça de ver suas exportações serem alvo de impostos extras na Europa.

Qualquer nova inserção internacional do Brasil, portanto, passará por uma revisão profunda dessa relação com o meio ambiente e assessores do novo governo sabem disso. Mas apenas adotar um novo discurso não será suficiente. O mundo vai cobrar do novo governo, a cada mês, resultados concretos para a redução do desmatamento.

Ciente dessa pressão, Lula costura um "tratamento de choque" internacional. De um lado, quer criar uma aliança com outros países emergentes para a defesa das florestas, com recursos dos países ricos e uma ampla cooperação internacional. Sua equipe também planeja sediar no Brasil uma conferência sobre o clima. Uma possibilidade poderia ser levar ao país a COP30 (Conferência da ONU sobre o Clima), em 2025.

Lula, de fato, usou seu primeiro discurso para deixar claro que a questão ambiental está entre suas prioridades. "O Brasil está pronto para retomar o seu protagonismo na luta contra a crise climática, protegendo todos os nossos biomas, sobretudo a floresta Amazônica", disse.

"Em nosso governo, fomos capazes de reduzir em 80% o desmatamento da Amazônia, diminuindo de forma considerável a emissão de gases que provocam o aquecimento global. Agora, vamos lutar pelo desmatamento zero da Amazônia. O Brasil e o planeta precisam de uma Amazônia viva", declarou.

Segundo fontes próximas ao presidente eleito, um caminho ainda pode passar por uma nova relação de integração regional. Ao contrário do modelo do final do século 20, o novo processo de aproximação ao restante dos vizinhos não irá se pautar apenas nas questões comerciais, mas também climáticas.

O tema de meio ambiente pode ainda ser usado como o instrumento de uma nova liderança do Brasil entre os emergentes, incluindo africanos e asiáticos. Se há 20 anos foi a questão do acesso aos remédios e o comércio agrícola que catapultou o país ao protagonismo internacional, a avaliação é de que, hoje, esse veículo é o clima.

Para a ONU, o que vem sendo feito pelas grandes economias do mundo não é suficiente para se evitar uma catástrofe climática.


Rússia e a Guerra

O governo governo brasileiro também terá de recalibrar sua posição em relação à guerra na Ucrânia. Ainda que dependa de fertilizantes russos e que se apresente como um ator de diálogo no cenário internacional, a proximidade de Bolsonaro ao governo de Vladimir Putin e os constantes votos de abstenção em resoluções na ONU colocaram um ponto de interrogação sobre a motivação real do Brasil.

Para diplomatas estrangeiros, a condenação de uma invasão, da anexação de territórios e crimes contra a humanidade não podem depender de considerações geopolíticas ou do fluxo de fertilizantes.

Mas, entre governos de diferentes partes do mundo, existe a expectativa de que Lula possa atuar na construção de um espaço de diálogo e, assim, auxiliar o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, hoje isolado no conflito e sem conseguir agir.

Direitos Humanos e reforma do Conselho de Segurança

Um desafio da nova diplomacia nacional será ainda a de voltar a adotar uma postura de defesa do multilateralismo e das reformas da ONU. Em 2023, o Brasil continuará com seus assentos no Conselho de Segurança e concorre a um lugar no Conselho de Direitos Humanos da entidade a partir de 2024. Mas a esperança é de que, agora, a opção seja por uma participação com o foco no fortalecimento das instituições.

"Vamos lutar novamente por uma nova governança global com a inclusão de mais países no Conselho de Segurança da ONU, e com o fim do direito a veto que prejudica o equilíbrio entre as nações", afirmou Lula.

No campo dos direitos humanos, os últimos quatro anos foram marcados por uma aliança com a extrema direita pelo mundo para derrubar alguns dos principais consensos construídos nos últimos 30 anos. O Brasil, ao lado de Hungria e outros países, chocou a comunidade internacional ao vetar ou criar problemas para a adoção de resoluções que defendiam questões como igualdade de gênero.

Fontes dentro da campanha de Lula já indicaram que o Brasil irá sair do Consenso de Genebra, iniciativa criada por Donald Trump e Jair Bolsonaro para implementar uma agenda ultraconservadora nas organizações internacionais.

Internamente, o governo desmontou mecanismos contra a tortura e encolheu o espaço para a participação da sociedade civil. Além disso, a recusa em aceitar que o Brasil sofreu um golpe militar em 1964 minou a capacidade de o país falar em democracia e direitos humanos.

Parte da busca por uma nova inserção passará por reafirmar o compromisso do Brasil com os principais pilares do sistema internacional, inclusive o compromisso de redução de fome, o restabelecimento da Funai e uma agenda explícita de apoio aos direitos de meninas e mulheres.

Uma vez mais, porém, a comunidade internacional cobrará mudanças reais na proteção de povos indígenas, dos afrobrasileiros e comunidade LGBT, além de uma transformação dos padrões de violência policial.


Relação com EUA

Bolsonaro ancorou sua política externa em sua aliança com Donald Trump, apostando que o americano seguiria a tradição dos presidentes americanos e ganharia um segundo mandato. Quando ficou viúvo do republicano, ele foi obrigado a rever alguns de suas alianças e estratégicas, abrindo um período de uma diplomacia sem direção, caótica e sem credibilidade.

O novo governo brasileiro, portanto, terá de restabelecer relações sólidas e independentes com o governo americano. Abandonando a submissão, mas capaz de manter o diálogo em temas que sejam de interesse mútuo.

O fato de Joe Biden ter sido um dos primeiros líderes internacionais a felicitar Lula foi interpretado no Itamaraty como uma possibilidade real de que uma aliança seja estabelecida entre os dois líderes para tratar de alguns dos principais temas internacionais.


China

A gestão da relação com a China nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro foi marcada por atritos e uma crise diplomática, o que atendia aos interesses americanos e ideológicos. A relação apenas ganhou um novo capítulo depois que, pressionado pelo agronegócio, a presidência foi obrigada a mudar o tom.

Maior parceiro comercial do Brasil, a China terá de ser vista como um ator estratégico para o futuro de setores inteiros do país. Mas, assim como no caso americano, uma inserção madura do país, na avaliação de negociadores, no cenário internacional passará pela capacidade de discordar, de questionar violações de direitos humanos e de buscar uma relação equilibrada.


Mercosul - Europa

Depois de 20 anos de negociações, o governo brasileiro de Jair Bolsonaro fechou em 2019 o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia. Mas a ratificação do tratado jamais ocorreu, diante de governos europeus que passaram a condicionar o acordo a compromissos ambientais por parte do Brasil.

Bolsonaro, apesar de diversas tentativas, jamais foi convidado a uma viagem de estado aos principais países europeus e queimou pontes fundamentais de diálogo com Espanha, França e Alemanha.

Para o novo governo brasileiro, aceitar o acordo como está pode abrir uma nova página para a relação estratégica entre Brasil e Europa. Mas num patamar insuficiente para os exportadores brasileiros, já que as condições aceitas por Bolsonaro ficaram abaixo das metas do agronegócio.

Mas se o Brasil optar por reabrir a negociação, também terá de aceitar que os europeus buscarão ampliar as exigências ambientais no acordo.

Lula, ao fazer seu primeiro discurso, deu algumas sinalizações de que pode retomar um novo caminho. "Queremos um comércio internacional mais justo, retomar nossas parcerias com os Estados Unidos e a União Europeia em novas bases, não nos interessa acordos comerciais que condenem o nosso país a eterno papel de exportador de commodities e de matéria-prima", disse.

"Vamos reindustrializar o Brasil, investir na economia verde e digital, apoiar a criatividade dos nossos empresários e empreendedores, queremos exportar também inteligência e conhecimento", afirmou.

Numa coluna publicada no jornal francês Le Monde, ele ainda sugeriu no sábado que não descartaria rever as bases do entendimento com os europeus. Mas também deixou claro que considera a aliança com os europeus como estratégica para fazer frente à rivalidade EUA x China.

Seja qual for o destino do capítulo comercial do tratado, a nova diplomacia brasileira precisa costurar de novo relações com um polo de poder importante no mundo e que pode ser fundamental como alternativa a um mundo multipolar que não dependa apenas do confronto entre americanos e chineses.