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Jamil Chade

REPORTAGEM

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'Despedida' de governo na ONU é transformada em ato de repúdio a Bolsonaro

Bolsonaro durante abertura da cúpula dos Brics -  Marcos Corrêa/PR
Bolsonaro durante abertura da cúpula dos Brics Imagem: Marcos Corrêa/PR

Colunista do UOL

12/11/2022 04h00

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O governo de Jair Bolsonaro será sabatinado na ONU, nesta segunda-feira (14), e, durante mais de três horas, governos de todo o mundo, entidades internacionais e nacionais farão um exame do que foi a política de direitos humanos do país.

O exercício ocorre com todos os membros da ONU e, no caso brasileiro, já estava agendado para ser realizado no final de 2022.

Diplomatas consultados pela reportagem apontaram que governos estrangeiros deverão denunciar o desmonte das instituições, entre elas a Funai, além de criticar o encolhimento do espaço cívico no Brasil durante os anos Bolsonaro.

Violência policial, racismo, ataques contra a comunidade LGBT, indígenas e meio ambiente também prometem ser destacados.

"Será um réquiem do governo Bolsonaro", admitiu um embaixador, na condição de anonimato. "Será um ato de repúdio contra tudo o que o governo brasileiro realizou", completou.

A sabatina —conhecida como Revisão Periódica Universal— ainda verá países apresentando recomendações ao novo governo brasileiro sobre como restaurar políticas de direitos humanos.

Alguns dos europeus já indicaram que irão sugerir o fortalecimento de órgãos públicos, desmontados durante a gestão de Damares Alves, eleita senadora e que permaneceu até meados do ano como ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos.

Durante a revisão, a delegação brasileira será chefiada pela atual ministra, Cristiane Britto, que esteve ao lado do presidente quando ele fez seu primeiro pronunciamento após a derrota nas eleições.

O sistema de sabatinas existe para que o mundo possa cobrar melhorias em termos de direitos humanos em um país. Recomendações são feitas e os estados têm a obrigação de dar respostas, quatro anos depois, No caso da revisão do Brasil, o processo ganha um outro componente, com uma espécie de oportunidade para que países que foram humilhados ou criticados por Bolsonaro deem suas respostas.

Além das cobranças por parte dos estados, a sabatina ainda será marcada pela participação de mais de uma dezena de entidades da sociedade civil. Muitas delas, ao longo dos meses, submeteram informes para a ONU, trazendo dados sobre a situação do país.

Omissões

O que ainda chamou a atenção internacional foi o fato de que, ao submeter seu próprio informe, o governo de Jair Bolsonaro omitiu os dados sobre a situação social brasileira, ignorou a fome e não fez qualquer menção sobre o número de mortes pela covid-19, um dos mais elevados do mundo. Tampouco existem referências sobre a violência policial, desmatamento e o desmonte das instituições de monitoramento de direitos humanos no país.

Para observadores, o informe foi transformado em um ato de campanha eleitoral, com uma lista de programas e medidas adotadas pelo governo, sem citar a realidade dos problemas que o país enfrenta.

Para uma rede de entidades da sociedade civil, movimentos sociais e ativistas, o documento "está muito longe de espelhar a triste realidade atual, os desmontes e os retrocessos dos direitos humanos havidos no país nos últimos anos".

Logo no início do documento oficial, o governo alega que o atual informe apenas complementa os dados que já foram apresentados pelo país em 2019. Numa avaliação de cada um dos pontos do informe, porém, o Coletivo RPU acusa o governo de "repetir o negacionismo, o retardo e a desproteção da população, os ataques e o desmonte das políticas de direitos humanos".

O Coletivo RPU - Brasil é a principal coalizão nacional composta por 31 entidades, redes e coletivos da sociedade civil brasileira. A iniciativa, coordenada pelo IDDH, tem por objetivo acompanhar a implementação das recomendações da revisão da ONU e cobrar transparência do Estado Brasileiro para ampliar a participação social. Entre as entidades que fazem parte do movimento está a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Artigo 19, Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Conselho Indigenista Missionário, Conectas e Movimento Nacional dos Direitos Humanos.

Apesar de listar cada uma das ações tomadas pelo governo, o informe oficial ignora a dimensão dos problemas. Para o Coletivo RPU, "há temas inteiros a descoberto, como a questão de defensoras e defensores de direitos humanos". "A qualidade da informação disponibilizada, dada a complexidade dos temas, é no mínimo insuficiente", diz.

Num documento paralelo, o Coletivo RPU Brasil apontou que a maioria absoluta das recomendações feitas ao governo há quatro anos ou não foi cumprida ou apresenta retrocessos.

Saúde e covid-19

No documento oficial, por exemplo, não há qualquer referência aos mais de 600 mil mortos pela covid-19 e os ataques de Bolsonaro contra as vacinas. O documento do governo cita os diferentes programas de apoio à população no caso da covid-19. Mas, para as ONGs, tais referências não mostram a realidade da crise. Segundo eles, a pandemia "foi tratada de forma irresponsável pelo Executivo Federal e genocida em relação a populações específicas, como as quilombolas e indígenas".

Ao explicar suas prioridades, o governo afirmou que "as políticas de direitos humanos empreendidas pelo Estado brasileiro foram orientadas para garantia dos direitos essenciais das populações mais vulneráveis".

"Assim, entre os públicos priorizados pelas políticas públicas, destacam-se mulheres, crianças e adolescentes, idosos, povos e comunidades tradicionais e pessoas com deficiência, principalmente. No contexto da pandemia de covid-19, que assolou o mundo nos anos, tais grupos estão entre os cerca de 68 milhões de brasileiros diretamente e prioritariamente contemplados pelo Auxílio Emergencial que buscou mitigar os efeitos financeiros da pandemia nas pessoas e nas famílias, pois mães chefes de família receberam o auxílio financeiro em dobro, em atenção a sua condição de maior vulnerabilidade", garantiu.

Nesse contexto, o governo ainda indicou que agiu para comprar vacinas. Mas ocultou a demora na compra das doses, a decisão de não fazer parte inicialmente de projetos internacionais e a insistência com a aquisição de remédios sem comprovação de eficácia.

No que se refere aos temas mais globais de saúde, as entidades alertam que o Brasil "é um país doente". "O sistema público de saúde, apesar de belo na palavra, tem muita lacuna, dificuldade de infraestrutura, de pessoal capacitado e, após o Teto de Gastos (Emenda Constitucional n. 95/2016), retrocedeu o nível de financiamento que existia na época de sua implantação", alertam. Eles ainda apontam que os direitos à saúde reprodutiva "estão em desmonte, com profissionais de saúde que usam de preconceito para recusar serviços básicos humanizados principalmente às mulheres e meninas".

Ao contrário do que o Itamaraty insiste em apresentar aos órgãos internacionais e enquanto seus diplomatas em Brasília se esforçam em criar realidades paralelas sobre o país, as entidades apontam que a crise no setor é grave.

"O Brasil está em retrocesso acelerado no setor da saúde, ampliando a vulnerabilidade das camadas mais pobres da população, mas não se restringindo a tal, pois atinge todas as classes sociais, principalmente no crescimento das violências institucionais contra as mulheres", denunciam.