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Jamil Chade

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Como um regime silenciou o mundo com espiões, dinheiro, gás e futebol

Infantino, presidente da Fifa, entrega troféu da Copa do Mundo para Lionel Messi - FRANCK FIFE / AFP
Infantino, presidente da Fifa, entrega troféu da Copa do Mundo para Lionel Messi Imagem: FRANCK FIFE / AFP

Colunista do UOL

21/12/2022 04h00

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Épico, drama ou ode? Victor Hugo tinha uma forma de diferenciar esses fenômenos, classificando o último como uma obra baseada no ideal, o épico como grandioso e o drama como real. Mas o que ocorre quando um evento reúne todos esses aspectos? Quando o realismo mágico latino-americano e o surrealismo que brota das profundezas da Europa superam a ficção?

No último domingo, 1,5 bilhão de pessoas pelo mundo estavam assistindo à final entre Argentina e França, um recorde. Em campo, um jogo que entrará para a história do esporte. De ambos os lados, atletas em seu auge pareciam confirmar a tese de Ernest Hemingway de que o homem não foi feito para a derrota. "Ele pode ser destruído, mas não derrotado", escreveu.

O jogo foi o ápice do que aquele evento simbolizava para os anfitriões no Qatar: a compra de seu lugar no mundo e a capacidade do futebol de eclipsar a realidade de uma ditadura.

Uma das maiores partidas da história abafou, em parte, uma Copa do Mundo conquistada pelo Qatar obtendo os votos de membros da Fifa que, hoje, estão em parte presos ou afastados do futebol. Um evento erguido com o sangue de imigrantes e salários miseráveis.

Nada disso parece ter impedido líderes de democracias em silenciar diante de um regime autoritário usando o esporte em busca de legitimidade.

Quem estava nas arquibancadas? Enquanto Messi e outros craques encantavam em campo, os camarotes ao longo do mês de Copa foram testemunhas de um desfile sem precedentes de líderes e magnatas do mundo. Elon Musk, Emmanuel Macron, o secretário de estado norte-americano, Antony Blinken, Erdogan, lideres curdos, parentes de Trump, autoridades sauditas, ministros europeus e até Eduardo Bolsonaro.

Nelson Rodrigues parecia ecoar pelos salões suntuosos dos estádios. "A Grande Guerra seria apenas a paisagem, apenas o fundo das nossas botinadas. Enquanto morria um mundo e começava outro, eu só via o Fluminense", dizia o cronista.

Desta vez, não era o tricolor das Laranjeiras. Ainda assim, aqueles líderes estavam ali fazendo política. Se cada um deles tinha seus objetivos domésticos e se Macron consolava Mbappe com objetivos populistas, eles ao mesmo tempo chancelavam um regime autoritário que usou a magia do futebol para mostrar um rosto mais moderado ao mundo.

Mas como essa operação ocorreu? Ciente de que a aventura seria uma cartada diplomática, o Qatar não se limitou a buscar votos entre os 23 membros do Conselho Executivo da Fifa. Ricardo Teixeira, ex-presidente da CBF e que votou pelo Qatar em 2010, chegou a dizer que a vitória do país do Golfo se explicava por votos que cumpriam uma lógica geopolítica.

De fato, ao longo de anos, o Qatar chegou a contratar espiões. Investigações realizadas pela Swissinfo revelaram que, com um orçamento de 387 milhões de dólares, o emir estabeleceu 66 operações ao longo de nove anos com uma empresa montada por ex-espiões da CIA para ganhar a eleição e blindar o projeto.

Parte do projeto ainda envolveu um contato direto com presidentes estrangeiros, como no caso de Nicolas Sarkozy, que em 2010 era o presidente da França. Naquele momento, os quatro votos da Uefa iriam para a candidatura dos EUA. Mas depois de um almoço entre Sarkozy, o emir do Qatar e Michel Platini, presidente da Uefa, a história mudou.

Os franceses optaram pelo Qatar e, nos meses seguintes, o PSG seria comprado pelo emir, que também desembarcaria com recursos na economia francesa, investimentos e alianças políticas.

Quem mais o Qatar comprou? Mais recentemente, o Parlamento Europeu foi alvo de um terremoto depois que investigações policiais mostraram como existem suspeitas de que o Qatar comprou elogios entre deputados e sindicalistas, além de ongs, para impedir que o país fosse alvo de resoluções e medidas de retaliação por conta de violações de direitos humanos.

Doha, como resposta, ameaçou cortar ou renegociar um acordo de abastecimento de gás natural para a Europa, central para que o Velho Continente atravesse o inverno diante da guerra na Ucrânia.

A influência do Qatar chegou até aos corredores da ONU e suas agências. Uma parcela de ativistas de direitos humanos se surpreenderam quando se deram conta que, nas braçadeiras dos jogadores ou nas placas ao redor do campo, o logotipo da OMS (Organização Mundial da Saúde) aparecia em publicidades estrategicamente posicionadas.

De acordo com a OMS, a colaboração com a FIFA "está orientada para compartilhar mensagens para promover a saúde e para melhorar concretamente o impacto na saúde para os milhões, se não bilhões, de torcedores que assistem aos jogos". A agência ainda se orgulha em dizer que, nesta Copa do Mundo, pela primeira vez, a alimentação em estádios e zonas de torcedores incluiu opções saudáveis desenvolvidas com a orientação da OMS.

Mas e sobre a saúde dos trabalhadores que ergueram os estádios? Nada.

A amizade do Qatar e da Fifa também foi estendida à Organização Internacional do Trabalho. No dia 19 de novembro, o presidente da Fifa, Gianni Infantino, irritaria a comunidade de ativistas e de direitos humanos ao declarar, durante uma coletiva de imprensa, que se sentia parte da população mais vulnerável no Qatar. "Hoje me sinto gay (...) hoje me sinto como um trabalhador migrante", disse. Mas foi neste monólogo perante a imprensa mundial de futebol que ele deixou escapar a notícia de que a FIFA e a OIT estabeleceriam em conjunto um "centro de excelência trabalhista".

"Estamos em discussão, temos um memorando de entendimento com a OIT", disse Gianni Infantino. "O diretor-geral (da OIT) virá aqui dentro de alguns dias", prometeu.

Na realidade, ao contrário da declaração do presidente da FIFA naquele dia, não havia nenhum Memorando de Entendimento entre sua organização e a OIT.

Infantino e Gilbert Houngbo, o novo diretor-geral da OIT, tinham-se reunido três dias antes em Bali, à margem da cúpula do G20. Houngbo já estava familiarizado com o Qatar: em 2016, como ex-diretor geral adjunto da organização, ele havia iniciado contatos com Doha após uma coalizão de sindicatos, agindo em nome dos trabalhadores estrangeiros, ter apresentado uma queixa à OIT pelas supostas violações dos direitos trabalhistas no Qatar.

Segundo fontes familiarizadas com as discussões em torno do acordo, o Infantino estava com pressa de tê-lo redigido e assinado. Ele se dirigiu diretamente a Houngbo, pedindo que o documento estivesse pronto até 4 de dezembro, quando Houngbo o visitaria em Doha.

De acordo com fontes próximas às conversas, seguiram-se consultas internas na OIT e, apesar de algumas resistências dos funcionários, Houngbo deu luz verde para preparar rapidamente um rascunho do acordo.

Não faltaram denúncias para serem averiguadas. Em julho do ano passado, Felipe González Morales, Relator Especial da ONU sobre os direitos humanos dos migrantes, Miriam Estrada-Castillo, Vice-Presidente do Grupo de Trabalho da ONU sobre Detenção Arbitrária, Tae-Ung Baik, Presidente-Relator da ONU do Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários, e Irene Khan, Relatora Especial da ONU sobre a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão escreveram uma carta para o governo do Qatar inquirindo sobre a situação de Malcolm Bidali, um trabalhador migrante queniano de 28 anos de idade e que decidiu publicar em um blog sua situação no Qatar.

"O Sr. Bidali tem chamado a atenção para questões de direitos dos trabalhadores, incluindo horários de trabalho, salários, acomodações e condições de trabalho", escreveram eles. Três meses depois, o governo informou que condenou Bidali pela "criação e distribuição de desinformação no estado do Qatar".

Em seu livro de 2020, Still Work to Be Done (Ainda há trabalho a ser feito): O futuro do Trabalho Decente no Mundo, Luc Cortebeeck, ex-vice-presidente do Conselho de Administração da OIT para o Grupo dos Trabalhadores, relata como, tendo montado uma "máquina de lobby sem precedentes", o Qatar tentou sistematicamente impedir uma investigação sobre seus direitos humanos e práticas trabalhistas.

Em 2014, depois que François Crépeau, Relator Especial da ONU para os Direitos Humanos dos Migrantes do Canadá, publicou um relatório documentado sobre as condições dos trabalhadores estrangeiros no país, o Qatar conseguiu reunir uma ampla coalizão de apoio.

Nela estavam países árabes que não queriam perder as remessas dos migrantes que estavam trabalhando no Qatar e mandando dinheiro de volta às suas famílias. A aliança ainda contava com governos que negociavam acordos com o Qatar ou envolvidos em grandes eventos esportivos, temerosos de que tal pressão acabaria afetando seus próprios planos e imagem.

Como resultado, um relatório não teve seguimento do Conselho de Direitos Humanos, escreve Cortebeeck. O Qatar jamais foi de fato incomodado.

No mesmo ano, com base nas evidências coletadas pelo Relator Especial e pela Confederação Sindical Internacional (ITUC), Cortebeeck pressionou o Conselho de Administração da OIT a estabelecer uma Comissão de Inquérito sobre o Catar. A votação fracassou.

Em seu livro, Cortebeeck conta as armas de pressão do Qatar. Isso incluía a ameaça grosseira do ministro do país sede da Copa de cortar o fornecimento de energia aos países apoiadores da missão de investigação. Assim, o ex-dirigente escancara a história das tentativas do Qatar de impedir o trabalho da missão de averiguação e de continuar contestando as evidências coletadas ao longo dos anos pela ONU, pelos sindicatos, pela sociedade civil, incluindo associações de futebol, e pela imprensa internacional.

Sedução.

Não faltaram ainda ofensivas diplomáticas e de sedução. Em 2017, o estado do Golfo ainda tornou-se co-presidente do Grupo de Amigos do Esporte para o Desenvolvimento e a Paz, promovendo eventos e resoluções na ONU sobre o papel do esporte e dos direitos humanos.

Durante as sessões do Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Qatar teve quatro exposições informativas nos corredores ao redor da sala do Conselho, uma delas chamada "Direitos Humanos e futebol" e desde 2018, a ONU em Genebra co-organizou três exposições de arte com a Missão Permanente do Qatar.

"Um sincero agradecimento também ao Qatar por apoiar este evento, incluindo a recepção que nos espera depois", comemorou o então diretor da ONU em Genebra, Michael Møller, em um discurso num desses eventos patrocinados pelo emir e lembrando aos convidados de que seriam alimentados pelo emir.

Ao longo dos últimos anos, a realidade é que o Qatar foi buscar na diplomacia internacional o caminho para lustrar sua imagem depois de surpreender ao mundo ao ganhar o direito de organizar a Copa do Mundo de 2022.

Para o emir, porém, sediar o torneio nunca foi apenas uma questão de futebol, e sim um atalho para aumentar seu softpower. Para isso, o pequeno país do Golfo não hesitou em gastar cerca de US$ 220 bilhões, bem acima do que Rússia e o Brasil gastaram em 2018 e 2014, respectivamente.

Manto

Ao final da Copa, o emir cobriu Messi com um manto - o Beshth, destinado aos guerreiros árabes que saiam de atos heróicos. Para alguns, aquilo foi um símbolo de respeito. Para os críticos, uma imposição desnecessária sobre a camisa argentina, em seu momento mais importante.

Para muitos, porém, aquilo não era nada mais que um recado: o Qatar venceu e os ecos dos gritos do trabalhadores mortos erguendo os estádios estavam abafados.