Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Carta às pessoas de bem: Quem são os humanos?
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Senhoras e senhores,
Tenho ficado atordoado diante da recusa de uma parcela da sociedade de reconhecer o sofrimento do povo yanomami e dos indígenas, em geral. Enquanto isso, uma nova onda de desinformação ganha contornos assustadores e antigos aliados, como o Exército, são alvos de ofensas por estarem saindo ao resgate dos povos tradicionais.
Tenho ficado atordoado diante da decisão de um esportista de publicar em suas redes sociais uma enquete na qual pergunta quem estaria disposto a assassinar um outro homem. No caso, o atual presidente. Não se iludam. Ele não é o único. Em conversas informais, confrarias de WhatsApp insistem que inimigos políticos precisam "morrer". Todos, sempre, pelo bem da nação, pela família e por Deus.
Terminamos a semana com a denúncia de um plano de golpe de estado, em sinais de que uma arapuca foi tentada para exacerbar uma ruptura na sociedade e nas instituições.
O ódio não é novo em nosso contexto. Sabemos que ele foi transformado em arma política, em estratégia de poder. E o resultado está hoje escancarado na reação de muitos, inclusive de um grupo que se autodenomina "pessoas de bem".
Confesso que quando vejo tanto ódio sendo usado como instrumento para supostamente fazer o bem, me vem à mente um dos episódios mais impactantes sobre o Holocausto. Não se trata da vida de Adolf Hitler. Mas a história sobre como homens ordinários, cristãos em sua maioria, cometeram crimes bárbaros durante a Segunda Guerra Mundial. Eram simples policiais, ajudados por operários, padeiros, garçons, motoristas de caminhões e trabalhadores do porto de Hamburgo. Estavam ali ainda alguns pequenos empresários e até um par de professores.
Juntos, eles faziam parte do Batalhão 101, enviado para a Polônia para uma "operação especial". Ao chegar nos novos territórios, descobriram que iriam executar judeus. Todos os dias.
Em sua brilhante pesquisa sobre esse episódio, o acadêmico Christopher Browning relata que apenas uma minoria dos policiais era do partido nazista. Quase ninguém fazia parte da SS.
Nem todos os homens ordinários aguentaram a tarefa de matar e pediram para ser dispensados. Mas quatro quintos do batalhão se mantiveram fiel à missão e permaneceram.
Na cidade de Jozefowi, 1,5 mil judeus seriam executados pelo grupo. Aquele seria apenas o começo. Ao final da estadia na Polônia, o Batalhão 101 participou da execução de mais de 80 mil pessoas.
Para cumprir a tarefa, muitos criaram argumentos pessoais para justificar matar famílias inteiras de inocentes. Um operário disse que mataria só crianças, alegando que ele evitaria que elas ficassem órfãs.
Não faltaram aqueles que trouxeram o sadismo em seu cotidiano. Um dos policiais chegou a levar para o "local de trabalho" sua jovem esposa, grávida. O objetivo era convencer a moça de que tinha escolhido o homem certo para acompanhá-la em sua vida.
O Batalhão 101 passou a ser usado como uma referência de como homens ordinários são capazes de seguir algumas das ordens mais cruéis. Foi naquele período, entre 1942 e 1943, que números impressionantes de pessoas seriam assassinadas durante o Holocausto. Se em março de 1942 cerca de 80% das vítimas da guerra ainda estavam vivas, em fevereiro de 1943, 80% já tinham sido executadas.
Mas o que deu a esses homens ordinários tal tranquilidade moral para matar? Como dormiam?
O contexto ideológico e a paz psicológica para a ação foram garantidos por uma propaganda nazista implacável. O processo é tão simples quanto poderoso: com uma narrativa adaptada à finalidade e a desumanização do adversário, o que seria impensável passa a ser aceitável.
Será que de fato existe a retórica vazia? Antes do 8 de janeiro, o quanto não ouvimos, como justificativa, que falas abjetas eram apenas palavras soltas no ar. "Ah, ele é assim mesmo. Um sincerão. Fala o que pensa e diz essas coisas" é o argumento mais repetido para justificar racistas, golpistas, xenófobos, misóginos, homofóbicos e outros criminosos.
A realidade é que não existe retórica vazia. Vimos como ela se transforma em um rascunho de um plano de ação.
O discurso do ódio e a desumanização não criam uma narrativa. Criam uma realidade e mudam, para sempre, a história.
Em 1947, depois da libertação de Auschwitz, Primo Levi publicaria seu livro "É isto um homem?"
Num dos trechos que mais me marcou, ele cita a Torre do Carbureto, no meio da fábrica e "cujo topo raramente se enxerga na bruma". A torre foi construída por aquelas pessoas sequestradas no campo de concentração. Hoje, todos sabemos a que ela servia.
Ao lado de companheiros judeus de todas as nacionalidades, ele constatou que aquela torre foi erguida por tijolos que, em cada idioma, recebia uma palavra diferente: ziegel, briques, tegula, cegli, kamenny, bricks, téglak.
Mas não foi apenas de tijolos que aquela máquina da morte foi construída. "Foi o ódio que os cimentou", escreveu o italiano. "O ódio e a discórdia, como a Torre de Babel, e assim a chamamos: Babelturm, Babelturm, e odiamos nela o sonho demente de grandeza de nossos patrões, seu desprezo de Deus e dos homens, de nós, homens".
Mas a escritora Juliana Monteiro, em sua capacidade ilimitada de promover uma insurreição dos nossos sentidos, nos traz uma interpretação poderosa do título da obra. "Vítima e carrasco têm um limite que, se transposto, os igualam. Não em sofrimento, crueldade, torpor, indiferença ou indignação. Mas em desumanidade", escreveu a brasileira.
Ao perguntar se "isto é um homem", já não sabemos a quem ele se refere. Quem deixou de ser humano primeiro?
O ódio é um dos legados mais profundos que herdamos de um movimento político nefasto. A Justiça será apenas uma parte da resposta. A outra —mais ousada— será a de retomar a dimensão humana de parcelas inteiras da sociedade que tinham sido classificadas como os inimigos a serem aniquilados.
Saudações democráticas,
Jamil
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