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Jamil Chade

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Carta ao presidente Lula: precisamos falar de democracia

Nicolás Maduro publica foto com Lula para falar sobre telefonema - Reprodução/Redes Sociais
Nicolás Maduro publica foto com Lula para falar sobre telefonema Imagem: Reprodução/Redes Sociais

Colunista do UOL

19/02/2023 04h00

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Presidente Lula,

Temos de falar sobre democracia. O senhor pautou sua campanha eleitoral na luta pela preservação e resgate desse valor fundamental. Tínhamos um governo que, ao longo dos anos, minou o estado de direito, profanou a república e transformou as instituições em peças de seu roteiro da construção de um regime autoritário.

Milhões de pessoas votaram no senhor com base nesse esforço de frear o desmonte da democracia. Muitos estavam cientes de que a disputa não era apenas entre dois candidatos. O que estava em jogo era muito maior.

Na semana passada, estive no Salão Oval e vi como o senhor e Joe Biden não disfarçavam a satisfação em declarar que a democracia havia prevalecido em ambos os países, apesar das tentativas de golpes em Washington em 2021 e em Brasília em 2023.

Mas na reconstrução do protagonismo do Brasil no mundo, o senhor sabe muito bem que, a partir de agora, terá de lidar também com governos autoritários. Por isso, escrevo essa carta para pedir que o senhor fale de democracia. Sempre.

Não estou aqui reivindicando uma postura de arrogância nossa de percorrer o mundo dando aula de como funciona uma democracia e o que sociedades devem fazer com seus destinos. Quem somos nós para ensinar algo?

Tampouco defendo aqui a ideia de intervenções. Sabemos hoje que, sob o argumento de "exportar a democracia", americanos tentaram redesenhar seus aliados na geopolítica. Basta ver o número de mortos que se acumularam no Iraque e na Líbia ao longo dos anos. Há pouco tempo, as meninas e mulheres afegãs descobriram que a intervenção jamais foi para salvá-las do Talebã.

Curiosamente, não me lembro de operações da CIA para derrubar as ditaduras do Egito ou da Arábia Saudita. Nada como ter amigos.

Tenho ainda dúvidas sobre a eficiência de sanções e isolamento como instrumentos para instaurar uma democracia. Sempre que esses embargos são aplicados contra um regime específico, o ditador de plantão transfere as dores daquelas medidas para sua população. Sem caminhos para contestar o mandatário, sem eleições para buscar outros candidatos e sem voz na esfera pública, o cidadão sucumbe.

Ou seja, não estou propondo que o senhor bote o dedo na cara de ditadores. Tampouco que corte relações e feche consulados e embaixadas.

Mas o que sei é que silenciar não é aceitável. Abrir mão de falar sobre esse princípio que nos norteia pode mostrar justamente os limites do nosso próprio compromisso com a democracia. Ou sugerir que ela é apenas mais uma fantasia de carnaval.

Hoje, quando uma democracia está ameaçada em um país, é a democracia em todos os lugares que sofre. Em nosso entorno, vivemos uma encruzilhada e, em locais como Nicarágua, jornalistas, religiosos e oposição passaram a ser alvos de um regime criminoso.

É verdade que humilhar publicamente um governo estrangeiro nem sempre é o melhor caminho para buscar um processo de diálogo que conduza à democracia. Já vimos como regimes ampliam a repressão quando estão sob ataque.

A história, de fato, nos mostra que o trabalho nos bastidores pode ser fundamental para mudar uma realidade.

Mas se deixarmos de denunciar —publicamente ou em reuniões fechadas— quando vozes são silenciadas e sombras se sobrepõem à cidadania, não faltarão perguntas sobre a coerência de um governo que se apresenta como aquele que resgatou a democracia em seu país, mas optou por fechar os olhos para o sofrimento do vizinho por motivos econômicos, geopolíticos ou ideológicos.

Portanto, escrevo esta carta para pedir que o senhor fale de democracia. Explicitamente ou nos bastidores. Mas que não deixe de incluir na agenda de política externa os valores de direitos humanos. Mostre as vantagens de ser uma democracia e como, invariavelmente, é nesse regime de liberdade que prosperidade, aumento da qualidade de vida e criatividade cultural se dão as mãos.

Alguns já adotaram essa linha. Gabriel Boric decidiu que falará de direitos humanos e democracia sempre que necessário, independentemente se o violador se diz também de uma suposta ideologia de esquerda ou representa uma ameaça de extrema direita. Seu comportamento, aqui na ONU, gerou comentários enciumados por parte de diplomatas de governos sul-americanos comandados pela esquerda: "queria ser chileno".

Na nossa busca por retomar o protagonismo internacional, há uma pergunta que precisamos nos fazer: Quem somos nós? Uma potência regional, um integrante do Ocidente, um líder do Sul Global? Talvez tudo isso.

Mas somos, acima de tudo, uma democracia. E precisamos assumir isso como parte de nosso DNA.

Nos próximos anos, nossa credibilidade no mundo passará pela coerência de nossa identidade fincada nos direitos humanos.

Por isso, presidente, peço: fale de democracia. Sempre e com todos.

Jamil