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Jamil Chade

OPINIÃO

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Silvio Almeida inaugura nova relação com ONU e faz desmonte do bolsonarismo

Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos - EVARISTO SA / AFP
Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos Imagem: EVARISTO SA / AFP

Colunista do UOL

06/03/2023 06h40

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Depois de quatro anos de uma relação conflituosa e repleta de polêmicas com a ONU, o governo brasileiro iniciou um processo de normalização de sua participação do cenário internacional e no debate sobre os direitos humanos.

O ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, concluiu no fim de semana sua primeira missão para reapresentar o Brasil à comunidade internacional, proliferando encontros com a cúpula da ONU, governos e relatores especiais e abandonando o discurso ideológico que havia marcado a gestão anterior.

Foram 15 reuniões e uma escolha estratégica por pedir um novo diálogo com os chefes de cada uma das principais organizações do sistema das Nações Unidas, além do Comitê Internacional da Cruz Vermelha.

Nas visitas, Silvio Almeida iniciou o desmonte da política externa bolsonarista e propôs uma nova relação com a ONU. Para isso, sinalizou a abertura do país em receber missões para examinar a crise de direitos humanos no Brasil e reafirmou o compromisso do governo com o multilateralismo. Ele ainda defendeu que se considere a realidade dos países emergentes e pobres, discurso que foi recebido com simpatia por latino-americanos, africanos e asiáticos.

Um dos convidados para visitar o Brasil foi o alto comissário da ONU, Volker Turk, uma reviravolta na relação entre a instituição e o país marcada nos últimos quatro anos por ataques por parte de Brasília contra qualquer comentário feito pela cúpula das Nações Unidas sobre temas como violência policial, situação dos indígenas, execuções e ameaças contra ativistas e racismo.

Silvio Almeida também deixou claro que o Brasil está aberto para receber a relatoria da ONU sobre a Independência do Judiciário e Advogados e costurou a participação do país em iniciativas internacionais.

Para interlocutores das Nações Unidas, o "novo Brasil" é tanto um alívio como uma peça estratégica no esforço dos organismos de impedir a continuação de um processo de retrocessos dos direitos humanos no mundo.

Fontes diplomáticas admitem que ainda existem preocupações e dúvidas sobre a capacidade de o governo de fato implementar todas as mudanças anunciadas. Também paira como uma indagação o posicionamento do governo Lula em casos de violações de direitos humanos em outros países, como no caso da Nicarágua.

Mas, num primeiro momento, a aposta da comunidade internacional é de que pode voltar a contar com o Brasil no debate. Não por acaso, nos encontros privados que teve, o ministro ouviu quase sempre o mesmo pedido das entidades internacionais: a cooperação do Brasil na defesa de valores fundamentais e que, hoje, estão ameaçados.

Sob Jair Bolsonaro, o Itamaraty e a pasta de Direitos Humanos foram instrumentalizados para permitir que a agenda de extrema direita fosse estabelecida como diretriz. A partir de 2019, o Brasil rompeu com posições tradicionais, abandonou um padrão de votos que orientava a política externa por décadas, redefiniu suas prioridades e passou a ser uma das principais vozes no desmonte de uma visão progressista dos direitos humanos.

Trump passa o bastão para Bolsonaro

O papel do Brasil na defesa do ultraconservadorismo ficou ainda mais forte quando, em 2021, Donald Trump deixou o governo americano. Num email em janeiro daquele ano enviado a apoiadores e instituições, a então sub-secretário da Família do governo americano, Valerie Huber, sinalizou que aliança reacionária estabelecida por Washington com parceiros pelo mundo seria, a partir daquele momento, liderada pelo Brasil.

O que se seguiu foi uma permanente recusa do governo Bolsonaro em aceitar críticas internacionais.

Nos bastidores da ONU e dos governos estrangeiros, tal postura destruiu a credibilidade do país e tornou o Brasil uma presença incômoda nos órgãos internacionais.

Em documentos internos produzidos pela equipe de transição do governo Lula, a constatação foi a mesma:

"Nos últimos quatro anos, o Brasil se distanciou de algumas de suas posições históricas em matéria de direitos humanos e do próprio mandato constitucional que determina que as relações internacionais do Brasil devem reger-se pelos princípios "da prevalência dos direitos humanos; da não-intervenção, do repúdio ao terrorismo e ao racismo", apontou o relatório produzido pela equipe de transição e que envolveu diplomatas e ex-ministros.

"Desde a redemocratização, o país se pautava pela defesa da indivisibilidade dos direitos humanos seletividade do uso político dessa também, atitude equilibrada e construtiva que favorecia a cooperação e o diálogo como ferramentas para a promoção e a proteção dos direitos humanos", afirmou.

"O governo Bolsonaro abandonou o protagonismo em agendas internacionais caras aos interesses de desenvolvimento nacional, como direito à saúde, direito à alimentação adequada, igualdade de gênero e racial, e enfrentamento a todas as formas de violência e de discriminação", disse.

Novas prioridades

Silvio Almeida, portanto, desembarcou no Conselho de Direitos Humanos, em Genebra, para mostrar que o Brasil retomaria sua postura internacional de defesa de bandeiras como a luta contra o racismo e democracia, mas que o retorno do país significaria também uma nova postura na defesa de novas bandeiras e a expansão de direitos.

Para diplomatas estrangeiros, simbólico foi o fato de que a delegação liderada pelo primeiro-ministro afrodescendente a ocupar o cargo também estava composta pela travesti paraense Symmy Larrat, chefe da Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.

Com Damares Alves como chefe da pasta, grande parte da estratégia brasileira tinha como finalidade reforçar temas como o da religião e família, pilares da agenda da extrema direita que, com tais pautas, camuflava uma visão excludente dos direitos humanos.

"A mudança no discurso diplomático e a participação desastrada em alianças ultraconservadoras caminharam de mãos dadas com o desmonte de políticas públicas domésticas, em especial no que se refere a igualdade de gênero, direitos sexuais e reprodutivos e direito de minorias. A gestão também promoveu visão enviesada do direito à liberdade religiosa e de crença, que falhou no enfrentamento à discriminação religiosa, principalmente contra religiões de matriz africana", completou o levantamento da equipe de transição.

Para fontes em Genebra, portanto, o Brasil sinaliza a retomada de sua postura tradicionais de defesa de direitos humanos, o que deve ser traduzido em um fortalecimento da posição do país como interlocutor.

Um termômetro desse novo momento foi o evento promovido pelo governo brasileiro às margens do Conselho. Numa sala lotada de governos estrangeiros, representantes da ONU e sociedade civil, a delegação brasileira apresentou com detalhes quais são suas visões sobre alguns dos principais desafios do país e do mundo.

Na avaliação de diplomatas estrangeiros, Silvio Almeida conseguiu iniciar um processo de reversão da crise de confiança que vivia o país no cenário. Para muitos, resta saber se terá orçamento e força política no debate interno do governo para conduzir a transformação que se propõe fazer.