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Governo Lula e países ricos racham em negociação sobre pacto pós-covid
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O governo de Luiz Inácio Lula da Silva e os países ricos racham nas negociações para a criação de um novo tratado internacional que tem como objetivo estabelecer direitos e obrigações aos governos de todo o mundo diante de uma eventual nova pandemia. Para diplomatas, se estabelecido, o entendimento seria histórico e seria um dos maiores legados do mundo pós-covid-19.
De forma confidencial, teve início em Genebra neste mês o processo negociador do acordo para regular de que maneira a comunidade internacional reagirá diante de uma eventual crise sanitária. O tratado foi uma proposta da União Europeia e aliados que, no auge da covid-19, constataram a ruptura de confiança total entre os governos, a corrida por vacinas e as acusações de falta de transparência por parte da China.
Também ficou claro durante a covid-19 que o mundo não contava com regras claras sobre quais eram as obrigações dos governos em informar a comunidade internacional sobre surtos, e nem como garantir um abastecimento justo de vacinas.
A ideia, portanto, foi a de iniciar a negociação de um tratado que, para muitos, poderia ser um marco na diplomacia mundial.
No caso específico do Brasil, o governo de Jair Bolsonaro foi sempre resistente a qualquer gesto que pudesse fortalecer a coordenação internacional ou dar poderes para a OMS. Agora, o novo governo deixou claro que está disposto a se engajar nas negociações e fortalecer as estruturas multilaterais.
Para os países emergentes, o processo passou a ser uma oportunidade para denunciar e corrigir o desequilíbrio na distribuição de vacinas. Entre 2020 e 2021, enquanto países ricos compraram vacinas suficientes para cinco vezes suas populações, dezenas de economias pobres passaram meses sem receber doses do imunizante. Na OMS, a constatação é de que milhares de vidas poderiam ter sido salvas se tivesse ocorrido uma distribuição mais justa das vacinas.
EUA vetam participação da sociedade civil
O processo negociador, porém, tem se mostrado mais complicado que muitos esperavam. Se durante meses os governos e a OMS coletaram propostas de todos os países sobre como deveria ser o novo tratado, foi apenas na semana passada que, fechados e de forma confidencial, negociadores iniciaram o processo de discussão de como seria o acordo internacional.
Mas as polêmicas não demoraram para aparecer. Quando o primeiro rascunho do texto foi apresentado, o governo dos EUA barrou a possibilidade de que o documento pudesse ser compartilhado com a sociedade civil, causando indignação.
Para Thiru Balasubramaniam, representante da entidade Knowledge Ecology International, o gesto é um "precedente perigoso". O temor da sociedade civil e de países em desenvolvimento é de que o conteúdo chegue até a indústria farmacêutica. Mas não para ativistas de direitos humanos, criando um desequilíbrio importante no processo negociador.
Mas a falta de transparência era apenas o início dos desentendimentos e frustrações. O governo brasileiro não disfarçou sua preocupação diante do anúncio da delegação europeia de que não tinha instruções políticas sobre como deveria atuar nas negociações.
A proposta de negociar um acordo havia sido lançada justamente por Bruxelas, colocando os países emergentes numa situação de constrangimento no auge da crise sanitária. Agora, a queixa de diplomatas é de que, depois do investimento dos governos no assunto, são os europeus que sinalizam uma hesitação.
Os europeus avisaram a seus interlocutores que não há uma redução da ambição do bloco sobre o que deve ser o tratado. Entretanto, a UE ainda luta para encontrar uma posição comum entre os seus 27 países.
Outro obstáculo é o fato de a UE não considerar o rascunho do texto como um ponto de partida adequado para uma negociação real.
Há também um sentimento dos países desenvolvidos de que, como tal, as negociações e as propostas estão "desequilibradas". Eles gostariam de ver mais comprometimento e acordo sobre medidas preventivas contra uma futura pandemia, ao contrário do foco no acesso aos remédios e à tecnologia, privilegiada pelo Brasil.
Sanções x Remédios
De acordo com fontes em Genebra, a primeira reunião negociadora esbarrou em problemas reais.
Durante as conversações, ficou claro que os europeus e outros países desenvolvidos não estavam dispostos a aceitar um tratado que exigisse, como quer o Brasil, um acesso "desimpedido e equitativo" a produtos médicos, vacinas e tratamentos.
Para europeus e americanos, o termo "desimpedido" poderia ser usado por governos como um instrumento para questionar e combater as sanções comerciais impostas a eles. Ter um tratado com tais poderes, neste caso, significaria um enfraquecimento do regime de sanções.
Outro obstáculo foi identificado quando a UE, Israel, EUA, Japão e Austrália se opuseram à ideia do Brasil e de outros países emergentes de incluir uma referência de que a comunidade internacional tenha "responsabilidades comuns e diferenciadas" diante de uma nova pandemia.
Ou seja: numa eventual crise sanitária, todos têm responsabilidades. Mas aqueles com mais recursos, produção e condições devem agir para garantir o abastecimento de vacinas e outros produtos ao restante do mundo.
Para os europeus e americanos, este é um conceito usado nas conversas sobre o clima e não deve ser colocado em um tratado pandêmico.
O Canadá também não mostrou flexibilidade ao aceitar uma proposta apoiada pelo governo brasileiro de incluir uma referência aos povos indígenas no futuro tratado.
Compartilhar benefícios
Um dos principais elementos de desacordo, no entanto, foi a insistência do Brasil e governos asiático, africano e latino-americano em assegurar que o tratado também estabelecesse regras sobre "compartilhamento de benefícios".
Os países emergentes estariam dispostos a compartilhar amostras de vírus e outros espécimes, se assegurados de que os produtos médicos desenvolvidos a partir daquela coleta chegariam até eles.
O temor do mundo em desenvolvimento é de que, depois de serem obrigados a fornecer amostras de um suposto vírus a um laboratório americano ou europeu, tenham depois de destinar bilhões de dólares para comprar o imunizante que seja produzido a partir daquilo que descobriram.
Mas, para os países desenvolvidos, incluindo os europeus, este é um conceito que deveria ser limitado à discussão sobre a biodiversidade. E não para pandemias.
EUA: não abriremos mão de soberania
Os países em desenvolvimento ainda foram surpreendidos, nesta semana, por uma declaração do governo de Joe Biden, rejeitando qualquer tratado que possa dar maiores poderes para a OMS ou obrigá-los a assumir novos compromissos.
"Estamos também cientes das preocupações de alguns de que estas negociações poderiam resultar em diminuição da soberania dos Estados Unidos", disse o comunicado da Casa Branca.
Os Estados Unidos não apoiarão nenhuma medida na Organização Mundial da Saúde, inclusive nestas negociações, que de alguma forma prejudique nossa soberania ou segurança"
"Qualquer acordo resultante destas negociações seria projetado para aumentar a transparência e a eficácia da cooperação entre nações durante pandemias globais e não daria de forma alguma poder à Organização Mundial da Saúde ou a qualquer outro órgão internacional para impor, dirigir ou supervisionar ações nacionais", alertaram.
Para o governo americano, não será aceito nenhum acordo que possa "comprometer a capacidade dos cidadãos americanos de tomar suas próprias decisões em matéria de saúde".
Diante do número elevado de disputas, negociadores já admitem que o prazo dado pela OMS para chegar a um acordo pode não ser suficiente. A meta é de ter um novo tratado até maio de 2024.
A próxima etapa de negociação será realizada em abril. Mas a última sessão terminou com muitas delegações alegando que a minuta tinha sido "desfigurada", com os diplomatas tendo dificuldades para entender o que ainda estava de pé e o que havia sido excluído.
Na OMS e no governo brasileiro, o medo é que, no auge da pandemia, o multilateralismo tenha sido instrumentalizado para enviar mensagens políticas internas e para criar uma cortina de fumaça.
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