Topo

Jamil Chade

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Em carta confidencial, ONU denuncia Polícia Rodoviária e cobra investigação

PRF  -
PRF

Colunista do UOL

14/03/2023 05h29

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Na primeira manifestação oficial ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva sobre as violações de direitos humanos cometidos por forças de ordem no Brasil, relatores da ONU cobram do Brasil uma atitude para frear as violações cometidas pela Polícia Rodoviária Federal e investigações sobre casos de violência.

A carta, obtida pelo UOL, é de 12 de janeiro de 2023 e foi assinada pelos relatores da ONU e presidentes de Grupos de Trabalho como Catherine Namakula, Morris Tidball-Binz, Olivier De Schutter e K.P. Ashwini.

No texto, os relatores apontam que outras comunicações foram enviadas cobrando o Brasil pela violência das forças de ordem e "lamentam" que não existam garantias de investigações imparciais.

No início de março, o novo ministro de Direitos Humanos, Silvio Almeida, esteve reunido na ONU com relatores, governos estrangeiros e com a cúpula das Nações Unidas. Nos encontros, ele deixou claro que existe uma ruptura em relação ao governo de Jair Bolsonaro e uma abertura para cooperar com as autoridades internacionais. O tema específico da violência policial ainda entrou na agenda.

No caso do texto ao governo Lula, os relatores destacam a morte de um garoto de 14 anos, em 27 de outubro de 2022, durante uma operação policial no Complexo do Chapadão e Vila Kennedy, no Rio de Janeiro, como exemplo das violações. A ação com mais de 60 homens foi realizada pela Polícia Rodoviária Federal, como retaliação à morte de um de seus oficiais.

O líder comunitário local Jorge Franco, da Faferj (Federação das Favelas do Rio de Janeiro), relatou naquele momento que o menino trabalhava como entregador de uma lanchonete na favela para ajudar no sustento da família e voltava para casa quando foi baleado na cabeça.

Em nota, a PRF indicou que "as equipes tiveram êxito em apreender dois menores e neutralizar um outro que, ao avistar a viatura dos policiais rodoviários federais, atirou em sua direção". "Os dois menores declararam que pertenciam ao tráfico de drogas local e que os três estavam de 'plantão' no comércio da 'boca de fumo' e na 'contenção" da comunidade'", afirmou a corporação em nota.

Mas a carta dos relatores da ONU, de dez páginas, aponta suspeitas de violações graves por parte das forças de ordem na investigação da morte do garoto. Entre elas:

  • Os policiais em serviço após o incidente não conseguiram preservar a integridade da cena da morte.
  • Medidas básicas como o isolamento imediato do local e sua investigação na presença do corpo não foram tomadas.
  • Até o momento, nenhum relatório do exame forense do corpo do falecido foi liberado para pessoas associadas ou para a Defensoria Pública, apesar dos repetidos pedidos.
  • Representantes da PRF supostamente ameaçaram e assediaram testemunhas do suposto assassinato a fim de encobrir as circunstâncias que levaram à morte de policiais supostamente tentaram intimidar os residentes da comunidade a prestarem falsas declarações indicando que estavam envolvidos na droga local.
  • Os relatores ainda destacam que pessoas associadas ao caso "não têm acesso aos relatórios médicos e de investigação do caso". "Além disso, não há informações sobre os procedimentos administrativos internos para fazer avançar a investigação relacionada ao assassinato", destacaram.
  • A carta também revela que os relatores receberam "informações sobre alegações de adulteração de provas, a falta de uma investigação forense efetiva sobre o caso e atos de assédio e intimidação contra testemunhas do incidente".
  • O texto ainda lembra que a operação foi realizada apesar da suspensão das prisões durante as eleições governamentais e em violação a uma recente decisão do Supremo Tribunal Federal que ordenou que as autoridades limitassem o número de operações policiais nas comunidades da cidade do Rio de Janeiro.

Não se trata de caso isolado

De acordo com os relatores, existe o temor de que outras operações policiais com as mesmas características possam ocorrer. "Um sentimento de medo alegadamente compartilhado por moradores e potenciais testemunhas levou indivíduos e famílias a se mudarem de suas residências habituais para locais distantes para se esconderem de agentes policiais, temendo represálias e retaliações no caso de buscarem mais investigações sobre o suposto assassinato", revelam.

Na carta, os órgãos e relatores da ONU "expressam profunda preocupação" com o assassinato, as irregularidades na investigação, incluindo forçar falsos testemunhos, a alteração relatada da cena do crime; e as supostas ameaças e assédio contra testemunhas do crime.

"Também expressamos preocupação de que a morte de não parece ser um caso isolado, mas um incidente recente no que parece ser um padrão de assassinatos de pessoas afro-brasileiras e residentes de bairros marginalizados no Rio de Janeiro e outras metrópoles brasileiras", denunciam.

As operações, segundo a ONU, "não parecem ter aderido às normas internacionais para o uso da força".

Se confirmada a acusação, trata-se de uma "violação de múltiplas disposições consagradas na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, na Convenção sobre os Direitos da Criança e na Convenção Internacional sobre a Eliminação da Discriminação Racial.

Polícia Rodoviária não tinha mandato

Os relatores ainda destacaram "com preocupação" o fato de que tais ocorreram fora do mandato constitucional da PRF. Para os representantes internacionais, tais forças não "possuem um mandato constitucional para funções policiais judiciais, incluindo a realização de investigações, nem para realizar operações em estradas municipais".

"Também nos preocupa o fato de que a operação policial foi realizada à noite, em uma área residencial densamente povoada, pelo apoio de um grande número de policiais, armas pesadas e veículos blindados, e que, segundo relatos de testemunhas, teve suas costas voltadas para os atiradores quando ele foi morto", diz o texto.

"A este respeito, lembramos que a força letal só pode ser usada pelas forças da lei para proteger vidas. Sob o direito internacional, qualquer perda de vidas que resulte do uso excessivo da força sem o estrito cumprimento dos princípios da necessidade e proporcionalidade é uma privação arbitrária de vida e, portanto, ilegal", alerta.

"As alegadas irregularidades nos procedimentos de investigação também são uma preocupação. Se comprovadas, elas não só violariam o arcabouço legal doméstico relevante no Brasil, mas também estariam em contraste com o direito internacional aplicável em matéria de direitos humanos", completa.

O que os relatores da ONU querem?

Agora, os relatores cobram o novo governo brasileiro a "conduzir investigações imparciais, independentes e transparentes dentro da estrutura legal nacional e dos mecanismos indicados para este fim, bem como o compromisso indicado de proteger os direitos das pessoas afro-brasileiras".

Numa longa lista de pedidos, os relatores ainda querem saber as seguintes informações:

  • Quais medidas preventivas foram tomadas para minimizar o risco de vida humana por ações policiais;
  • Se foram realizadas autópsias nas pessoas mortas;
  • Que reparações, incluindo indenizações, desculpas públicas e apoio psicossocial, se houver, foram fornecidas às vítimas, suas famílias e outros membros da comunidade afetada;
  • Detalhes da situação das investigações sobre todas as alegações de má conduta e violações por membros das forças de segurança, bem como sobre as sanções precisas tomadas contra os perpetradores identificados, e as medidas tomadas dentro de tais medidas para garantir a não repetição de violações.

As suspeitas de violações por parte da Polícia Rodoviária Federal:

Na carta, as autoridades destacam que a PRF detém um mandato legal para monitorar as rodovias e garantir sua segurança. "Desde 2019, o Ministério da Justiça emitiu uma série de resoluções expandindo o escopo de ação do PRF para incluir operações conjuntas com outros órgãos federais, estaduais ou municipais para combater a atividade criminosa", apontou.

"Entre janeiro e setembro de 2022, a PRF esteve supostamente envolvida em 38 operações policiais", destacou.

Segundo eles, a condução da operação da PRF no Complexo do Chapadão em 27 e 28 de outubro de 2022 não respeitou aspectos importantes da legislação nacional brasileira. Entre elas, estão:

a) a decisão ADPF nº. 635 da Suprema Corte impondo restrições à condução de operações policiais nos municípios do Estado do Rio de Janeiro durante a pandemia e declarando que as investigações seriam conduzidas pelo Ministério Público se houvesse suspeitas de que agentes dos órgãos de segurança pública estivessem envolvidos;

b) o Controle Externo da Atividade Policial do Ministério Público, que estabelece os requisitos mínimos para a ação penal no controle externo das investigações de mortes resultantes da intervenção policial, inclusive exigindo que as autoridades policiais isolem o local do crime e façam avançar o exame forense do local do crime;

c) a Lei Orgânica Nacional de Defensoria Pública, que concede a seus membros a prerrogativa de solicitar às autoridades públicas ou a seus agentes investigações, certificações, pareceres de especialistas, inspeções, investigações, procedimentos, documentos, informações, esclarecimentos e determinações que possam ser necessárias para o exercício de seus poderes.

"Até o momento, não há provas de que o Ministério Público tenha sido informado com antecedência sobre o envio da PRF ao Complexo do Chapadão. A PRF parece ter agido sozinha nesta operação e não em apoio a outras forças. Além disso, não havia rodovias federais nas proximidades do incidente, o que significa que o PRF não estava agindo dentro de seu mandato ao conduzir a operação que levou ao assassinato", completou.