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Jamil Chade

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Carta ao G7: vocês mostraram que a ideia de humanidade é sonho distante

Líderes do G7 em reunião em Hiroshima, no Japão - KYODO/via REUTERS
Líderes do G7 em reunião em Hiroshima, no Japão Imagem: KYODO/via REUTERS

Colunista do UOL

21/05/2023 04h00

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Prezados líderes do G7,

Há poucas semanas, aqui em Genebra, a OMS decretou o fim da emergência internacional da covid-19. O que nós atravessamos foi equivalente a uma guerra de enormes proporções, com a agência de saúde indicando que 20 milhões de pessoas podem ter morrido nestes três anos.

Lembro-me como, pelas redes sociais, proliferam selfies de famílias sinceramente felizes e emocionadas que brindavam a chegada das primeiras vacinas aos braços de avós e avôs repletos de planos. O abraço tão humano que nos fez falta durante meses estava de volta. O abraço que, na falta de palavras, substitui um dicionário inteiro de amor.

Por meses, porém, esse abraço foi o privilégio de apenas uma porção da humanidade.

Hoje, escrevo esta carta para alertar que, enquanto vocês fingem que a covid-19 é parte do passado, famílias ainda choram aqueles que, desnecessariamente, partiram mais cedo. A emergência acabou. Mas o fracasso moral veio em elevadas doses, assim como um déficit de liderança por parte de vários de vocês.

Basta um mergulho nos números de distribuição das vacinas para entender que a ideia de um "planeta comum" é ainda um sonho distante de uma utopia necessária e que pouco mudou desde que nossas certezas foram chacoalhadas pela pandemia. Temo que tenhamos perdido uma oportunidade única para transformar o mundo.

Pela primeira vez na história, o desenvolvimento de uma vacina foi realizado enquanto entidades internacionais erguiam um mecanismo para garantir que erros do passado não fossem repetidos. Ou seja: que as inovações e a ciência pudessem chegar a todos. E não a uma minoria no planeta.

Nos bastidores, especialistas e representantes de governos mais pobres arregaçaram as mangas para preparar a distribuição nesses locais onde falta energia elétrica, estradas e água. Tudo isso aconteceu.

Mas ficou faltando algo fundamental: a solidariedade, limitada a discursos diplomáticos e fechada em cofres acumulados em armazéns em poucos países do mundo.

Por meses, apenas dez países recebiam o equivalente a 75% dos imunizantes existentes. 20% desse total apenas nos EUA. Por um longo período, 130 países ainda viviam a expectativa da primeira dose.

Para que o mecanismo de distribuição funcionasse e que a disparidade fosse alvo de uma transformação profunda, o mundo precisava de US$ 27 bilhões em 2021. O valor era elevado. Mas não passa de uma fração dos US$ 204 bilhões para salvar os bancos americanos em 2008. Apenas o JPMorgan Chase & Co recebeu o equivalente ao que o mundo precisou em 2021 para garantir a vacina para bilhões de pessoas.

Mas, no caso dos bancos, a aprovação dos recursos foi garantida. Afinal, o que estava sendo salvo era o sistema financeiro, e não meras vidas.

Mais recentemente, vimos mais de US$ 100 bilhões destinados para ajudar a Ucrânia a se defender dos agressores russos.

Nos últimos anos, muitos de vocês, enquanto faziam discursos humanistas pelos salões da diplomacia, optavam por colocar limites às exportações das vacinas. Vários de vocês, hoje reunidos no Japão, se recusaram a ceder a patente de vacinas.

Fico me perguntando: e se vocês estivessem do outro lado da fronteira, o que fariam? E se não fossem vocês os donos do monopólio sobre a vacina?

Enfim, como será que vocês definem o que é a humanidade?

Eça de Queirós decifrou a fronteira dessa noção em um de seus textos reunidos em "Cartas Familiares e Bilhetes de Paris". Ele nos lembra que essa humanidade "consiste especialmente naquela porção de homens que residem no seu bairro". "Todos os outros restantes, à maneira que se afastam desse centro privilegiado, se vão gradualmente distanciando também em relação ao seu sentimento, de sorte que aos mais remotos já quase os não distingue da natureza inanimada", escreveu no final do século 19.

Mas, hoje, qual seria exatamente o nosso "bairro"? Diante de um vírus que usou os mesmos canais da globalização virtuosa para chegar a todo o planeta, essa fronteira de quem faz parte da humanidade ou não foi borrada dos mapas.

A era do mundo infinito da mentalidade vigente na realidade de Eça de Queiroz chegou ao fim, se é que um dia existiu. Para que eu sobreviva, meu inimigo precisa ser vacinado. Para que a rica cidade de Genebra esteja segura, Ouagadougou precisa receber vacinas. Para que patroas durmam protegidas de uma eventual nova variante do vírus, aquelas senhoras que passam noites acordadas cuidando de seus filhos precisam estar vacinadas.

A realidade é que a pandemia fez o planeta tirar uma selfie. Mas a imagem refletida foi de uma sociedade disforme, injusta e egoísta. Hoje, Charles Darwin está sendo sacudido. Não exatamente por criacionistas rejeitados até pelo Vaticano ou terraplanistas que despencaram do abismo intelectual. Mas por um imperativo moral de que o futuro de uma sociedade não pode ser deixado à sobrevivência do mais apto e nem às regras cruas e cruéis do mercado.

Em meados dos anos 90, um tratamento contra o vírus do HIV já existia, permitindo ampliar a sobrevivência daqueles que tinham sido infectados. Mas esse benefício da ciência praticamente só era uma realidade para aqueles que viviam em países ricos. O tratamento custava em média US$ 10 mil por ano e, assim, um paciente na África precisaria de o equivalente a 20 anos de salários para pagar por apenas alguns meses do coquetel de remédios que deveria tomar para o resto de sua vida. Na prática, o tratamento não existia para uma enorme porção da população mundial.

De acordo com a entidade Médicos Sem Fronteira, até que os remédios fossem disponibilizados em sua versão genérica e sem patentes para essas populações mais pobres a um custo de US$ 1,00 por dia, 11 milhões de pessoas morreram apenas no continente africano.

Nem todos eles teriam sido salvos se os remédios chegassem antes. Mas certamente milhões de famílias poderiam ter evitado o pior e prolongado a vida - inclusive produtiva - de seus entes queridos.

Se na primeira vez a história ocorreu como uma tragédia, ela se repete como uma farsa: 30 anos depois, ficou claro que a humanidade sofre de uma amnésia aguda quando o tema é salvar vidas.

Uma vez mais, a crise sanitária escancarou a falácia de que o avanço da ciência funciona para todos. Por décadas, empresas abandonaram pesquisas sobre doenças que afetavam os mais pobres e que, portanto, não renderiam dividendo aos investidores. Elas foram chamadas de "doenças negligenciadas", um nome hipócrita para falar, no fundo, de povos negligenciados.

Uma vez mais, os ricos foram os primeiros a serem imunizados. Enquanto isso, o restante - frequentemente mais escuro, mais exausto, mais distante de seus sonhos e mais desprotegido - fez filas intermináveis a espera de esperança - na forma de uma dose da vacina. Nem todos viveram para ver esse dia.

De fato, a covid-19 é apenas um exemplo de uma crise maior. Hoje, existe a cura para muitas doenças que matam. Existe alimentos para abastecer dois planetas. E existem pessoas dispostas a ir em socorro dessas populações. O que nem sempre existe é o compromisso político para que isso se transforme em realidade.

Para as veias abertas do mundo, o que temos no momento são curativos improvisados e insuficientes, prestes a definhar. Assim como nos anos 1990, ficou mais uma vez claro entre 2020 e 2023, que a vida ou a morte não dependem apenas do avanço da ciência. Mas de quem você é e onde, por acidente, nasceu.

A pandemia, o vírus e a vacina traduzem ao século 21 o que o membro da resistência francesa na Segunda Guerra Mundial, Jean Bruller, já havia constatado.

"A humanidade não é um estado a que se ascenda. É uma dignidade que se conquista".

Que possamos aprender as duras lições da emergência que chegou ao seu fim.

Saudações democráticas,

Jamil