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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Contrariando Lula, missão criada pela ONU denuncia crimes de Maduro

Colunista do UOL

31/05/2023 04h00

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Tortura, espancamento, asfixia, violência sexual, prisões arbitrárias, censura, repressão e violações de direitos humanos. Num informe produzido por uma missão criada pela ONU, é refutada a tese do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de que a situação na Venezuela seria apenas uma "narrativa" criada contra Nicolás Maduro. Segundo as conclusões do inquérito independente, crimes contra a humanidade ocorreram no país.

Nesta semana, o presidente brasileiro contestou a pressão internacional contra o venezuelano e alertou que uma "narrativa" havia sido criada para abalar o governo Maduro. A frase de Lula causou polêmica, com governos sul-americanos rebatendo a forma pela qual Lula descreveu a situação.

Se retomar a relação diplomática com Caracas era vista como um gesto importante por parte do Brasil, o entusiasmo de Lula com Maduro criou constrangimentos, mesmo entre diplomatas.

Na comunidade internacional, ninguém nega que a pressão sobre Maduro existiu e fazia parte de uma operação liderada por Donald Trump e seus aliados. Mas, diante da necessidade hoje de seu petróleo, governos estrangeiros reavaliam como retomar a relação com Caracas, inclusive por parte dos europeus.

Entre ativistas de direitos humanos e organismos internacionais, o temor é de que a repressão dos últimos anos seja ignorada, em nome de um "novo capítulo" na normalização da relação com os venezuelanos.

Para esses ativistas, os crimes já estão registrados.

Num informe detalhado sobre as operações de repressão na Venezuela contra a oposição, uma missão estabelecida pela ONU alertou no final de 2022 que as agências de inteligência militares e civis do estado funcionam para implementar um "plano orquestrado nos mais altos níveis do governo para reprimir a dissidência através de crimes contra a humanidade".

Antes, em 2020, a mesma missão alertou que o presidente Nicolás Maduro e outros membros do alto escalão do governo estavam cientes das violações e deram apoio e ordens aos grupos que levaram adiante tais atos. O inquérito sugeriu que o Tribunal Penal Internacional considerasse ações legais contra os responsáveis.

De acordo com o inquérito, Maduro e outros líderes sabiam, coordenaram ou contribuíram nos atos criminosos. Desde 2014, 3,4 mil opositores políticos teriam sido presos e a repressão era "uma política de Estado". Segundo o inquérito, Maduro chegava a saltar a cadeia de comando dos militares para dar ordens diretas em certos casos.

Dois anos depois, no novo informe, a missão apontou que Maduro "orquestrou" o plano e constatou o papel de indivíduos em diferentes níveis nas cadeias de comando para suprimir a oposição ao governo.

Tais atos envolveram a prática de atos de tortura extremamente graves que equivalem a crimes contra a humanidade. O documento foi produzido pela Missão Internacional Independente de Investigação de Fatos sobre a República Bolivariana da Venezuela (FFMV). A missão foi proposta no Conselho de Direitos Humanos da ONU e aprovada pela maioria dos países.

"De acordo com a análise da Missão e as informações recebidas, dissidentes reais e supostos e opositores do governo foram alvos de detenção com base em critérios que incluíam sua suposta participação em conspirações contra o governo, seus papéis de liderança ou potencial de liderança, seus papéis dentro da oposição política, suas críticas públicas ao governo e, em alguns casos, seu potencial de serem submetidos a atos de extorsão", disse o informe.

"Em certos casos, o presidente Nicolás Maduro e outras pessoas de seu círculo íntimo, bem como outras autoridades de alto nível, estavam envolvidos na seleção dos alvos", denunciam.

Entre as medidas de tortura realizadas pelo estado venezuelano, a missão criada pela ONU identificou:

  • Espancamento de vários detentos, inclusive com objetos como um bastão
  • Asfixiar detentos com sacos plásticos ou granadas de fumaça;
  • Aplicação de "señorita", um dispositivo de tortura para colocar corpos em tanques de água;
  • Aplicar choques elétricos contra os detentos, inclusive nos testículos dos detentos;
  • Cometer atos de violência sexual, inclusive estupro de detentos com varas de madeira;
  • Ameaçar os detentos de estuprar e matar membros de suas famílias se eles não fornecessem determinadas informações;
  • Colocar alfinetes nas unhas dos detentos;

No documento, o grupo detalha os papéis e contribuições de vários indivíduos em diferentes níveis das cadeias de comando dentro dessas agências e pede às autoridades que investiguem suas responsabilidades.

"Nossas investigações e análises mostram que o Estado venezuelano conta com os serviços de inteligência e seus agentes para reprimir a dissidência no país", constata.

"Ao fazê-lo, crimes graves e violações dos direitos humanos estão sendo cometidos, incluindo atos de tortura e violência sexual", disse. "Estas práticas devem cessar imediatamente, e os indivíduos responsáveis devem ser investigados e processados de acordo com a lei", disse Marta Valiñas, presidente da missão.

No mesmo documento, o grupo destaca ainda a situação no estado Bolívar do sul do país, onde atores estatais e não estatais cometeram uma série de violações e crimes contra as populações locais em áreas de mineração de ouro.

Para chegar às conclusões, a missão realizou 246 entrevistas confidenciais, presenciais e remotas. Além disso, analisou arquivos de casos e outros documentos legais. Devido a uma contínua falta de acesso ao território venezuelano desde sua criação em 2019, a Missão realizou visitas a áreas ao longo das fronteiras do país.

"A Venezuela ainda enfrenta uma profunda crise de direitos humanos, e nossos relatórios de hoje destacam apenas dois aspectos desta situação. Exortamos a comunidade internacional a continuar a acompanhar de perto os desenvolvimentos na Venezuela e a monitorar se estão sendo feitos progressos confiáveis no avanço da justiça, da prestação de contas e do respeito aos direitos humanos", disse Valiñas.

Entre os responsáveis pelos crimes, a missão destacou o papel da Direção Geral de Contra-espionagem Militar (DGCIM) e o Serviço Nacional de Inteligência Bolivariana (Sebin) - na prática de violações dos direitos humanos desde 2014. Algumas dessas violações equivalem a crimes contra a humanidade.

No total, a missão internacional registrou 122 casos de vítimas que foram submetidas a tortura, violência sexual ou outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, perpetrados por agentes do estado. A tortura foi praticada na sede dos órgãos em Caracas e em uma rede de centros de detenção secretos em todo o país.

Já a inteligência venezuelana tem torturado ou maltratado detentos - incluindo políticos da oposição, jornalistas, manifestantes e defensores dos direitos humanos - principalmente no centro de detenção El Helicoide, em Caracas. "A missão investigou pelo menos 51 casos desde 2014. O relatório detalha como as ordens foram dadas por indivíduos nos mais altos níveis políticos a funcionários de nível inferior", constata. Tanto o Sebin quanto a DGCIM fizeram amplo uso da violência sexual e de gênero para torturar e humilhar seus detentos.

Plano colocado em ação por Maduro

Uma das queixas da missão da ONU é de que as autoridades venezuelanas não conseguiram responsabilizar os autores dos crimes e nem reparar as vítimas em um contexto em que as reformas judiciais anunciadas a partir de 2021 não conseguiram resolver a falta de independência e imparcialidade do sistema judiciário.

"As violações e crimes cometidos pelo Sebin e DGCIM continuam até hoje. As mesmas estruturas, dinâmicas e práticas permanecem em vigor, enquanto funcionários relevantes continuam a trabalhar para as agências, e em alguns casos foram até promovidos. A análise da Missão detalha ainda como estes esforços foram colocados em ação pelo Presidente Maduro e outras autoridades de alto nível como parte de um plano deliberado do Governo para suprimir as críticas e a oposição", destacou.

"As violações dos direitos humanos pelas agências de inteligência do Estado, orquestradas nos mais altos níveis políticos, ocorreram em um clima de quase completa impunidade. A comunidade internacional deve fazer tudo para garantir os direitos das vítimas à justiça e às reparações", disse Francisco Cox, membro da missão.