Espionagem aproximou israelenses ao governo Bolsonaro
A busca por ferramentas capazes de espionar opositores levou aliados de Jair Bolsonaro e seus filhos a promover uma aproximação a empresas israelenses e membros do governo de Benjamin Netanyahu, desde os primeiros dias do governo Bolsonaro.
O israelense esteve na posse de Bolsonaro, enquanto delegações realizaram visitas frequentes, entre 2019 e 2022. Algumas das viagens foram permeadas por polêmicas, como a ida do então chanceler Ernesto Araújo para Israel, supostamente para negociar a compra de um "spray nasal" que seria usado contra a covid-19. O projeto jamais se concretizou.
Mas um setor sempre esteve nas pautas entre os dois governos: a espionagem.
Uma das tentativas de negociação ocorreu em novembro de 2021, quando delegações de ambos os países compareceram numa das maiores feiras aeroespaciais do mundo, conhecida como "Dubai AirShow". Um integrante do chamado "gabinete do ódio" entrou no estande de Israel com o interesse de municiar o grupo paralelo no Palácio do Planalto com uma poderosa ferramenta espiã, para ser usada, em especial, na eleição de 2022.
Pouco antes do encontro em uma sala privativa no espaço cedido por Israel, o então presidente Jair Bolsonaro cumpria uma das agendas de sua viagem aos Emirados Árabes em novembro de 2021: a inauguração, no mesmo evento, do "pavilhão Brasil".
No estande de Israel, porém, o membro do órgão informal, perito em inteligência e contrainteligência, conversou com um representante da empresa Dark Matter.
A companhia com sede em Abu Dhabi, composta, em sua maioria, por programadores israelenses egressos da Unidade 8200 (força de hackers de elite vinculada ao exército de Israel), desenvolveu sistemas capazes de invadir computadores e aparelhos celulares de alvos, inclusive estando eles desligados. As informações deste encontro foram reveladas pelo UOL em 2022, pelos jornalistas Lucas Valença e Jamil Chade.
Em outra frente, o "gabinete do ódio" manteve conversas com a empresa Polus Tech, com o objetivo também de obter artefatos produzidos pela companhia. Com sede na Suíça, a Polus Tech tinha como CEO o programador israelense Niv Karmi, um dos ex-fundadores da NSO Group, empresa dona da poderosa ferramenta espiã Pegasus, sendo o "N" da sigla.
Em maio de 2021, o UOL já havia revelado que o vereador carioca Carlos Bolsonaro interveio em uma licitação (a de nº 03/21), promovido pelo Ministério da Justiça, para que o órgão contratasse o avançado programa de espionagem Pegasus.
A aquisição do sistema, que constava no processo de instrução da disputa, contudo, foi frustrada após o interesse do gabinete do ódio pela ferramenta vir a público e após o TCU (Tribunal de Contas da União) suspender a licitação.
A polêmica ferramenta virou notícia no mundo por ter sido utilizada por governos para espionar jornalistas, ativistas e inimigos políticos dos chefes de estado. Segundo um consórcio de 17 jornais de dez países, ao menos 180 jornalistas chegaram a ser monitorados por meio do sistema Pegasus.
O UOL revelou que um revendedor brasileiro tentava oferecer o sistema Pegasus ao Ministério da Justiça, que abriu uma licitação para a aquisição da nova "solução de inteligência em fontes abertas, mídias sociais, Deep e Dark Web".
A licitação que visava a "aquisição de uma ferramenta de busca e consulta de dados em fontes abertas", que contou com a possível interferência de Carlos Bolsonaro, foi pensada pelo ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro, na intenção de adquirir uma poderosa ferramenta de espionagem para municiar o Centro Integrado de Operações de Fronteira. A licitação só foi concluída na gestão de Anderson Torres
O Fusion Center, como é conhecido o modelo americano que integra informações de forças de segurança, seria instalado em Foz do Iguaçu, na tríplice fronteira no Paraná, e teve um GT (Grupo de Trabalho) criado pela Portaria nº 264, de 25 de março de 2019. A instalação ainda não se viabilizou.
A intenção era concluir ambas as licitações, para a criação do centro de controle e para a aquisição de uma ferramenta de inteligência, até 2020, mas diversos atrasos impediram que Moro concluísse até a data de sua exoneração em 24 de abril de 2020.
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receberContudo, uma ferramenta, a Pegasus, era criticada por integrantes da cúpula militar à época. Um dos generais críticos do sistema era o então ministro da Secretaria de Governo, general Carlos dos Santos Cruz.
Este edital de nº 03/21, porém, contou com dois processos de instrução distintos, um em 2020 e outro em 2021, sendo o primeiro ocorrido ainda na gestão de Moro.
A saída da empresa fornecedora do Pegasus do pregão ocorreu após reportagem do UOL mostrar o envolvimento de Carlos Bolsonaro na negociação.
O UOL teve acesso a todas as propostas encaminhadas aos dois processos de instrução e observou que algumas empresas se repetem em ambos. Dentre elas, está a proposta feita pela Verint, que passou a se chamar Cognyte no ano seguinte.
A companhia fornecia um sistema israelense, mas, diferentemente do Pegasus, essa ferramenta contava com o apoio da ala militar do governo, já que informações estratégicas e dados de brasileiros poderiam ser armazenados no Brasil.
Só que a proposta da Verint de R$ 11,2 milhões, apresentada no dia 13 de março de 2020 ao ministério, era assinada pelo gerente de contas da empresa representante no Brasil, Caio dos Santos Cruz, filho do então ministro Santos Cruz.
A proposta, porém, continha uma carta assinada no dia 20 de março de 2019 (um ano antes) por Mishel Ben Baruch, diretor do Ministério da Defesa de Israel e endereçada ao então ministro Sergio Moro.
A correspondência anexada por Caio Cruz evidenciava que a licitação começou a ser construída ainda em março do primeiro ano da gestão do governo Bolsonaro.
A carta é praxe em licitações que envolvem ferramentas de Defesa que podem conter informações sigilosas de outros países. Neste caso, como a Verint vendia um sistema israelense, uma das autoridades do país enviou uma carta ao Brasil para informar que a possível venda do acesso ao produto não comprometia a soberania de Israel.
O que não é comum é a carta ser endereçada diretamente a Moro, e não aos responsáveis diretos pela licitação, o que sugere uma possível aproximação de Caio Cruz com o ex-ministro.
No processo de instrução ocorrido em 2021, quando Moro já não era mais ministro, cinco outras cartas foram encaminhadas pela Verint, nenhuma delas ao ministro. Todas as correspondências foram endereçadas aos responsáveis pela licitação.
A reunião secreta
Em junho de 2019, em uma reunião sigilosa no Quartel-General do Exército, sete generais com influência no alto comando do Exército se reuniram para tratar da então suspeita de invasão que Moro havia sofrido no celular. Posteriormente a invasão resultou na Operação Spoofing.
Segundo uma fonte que esteve no encontro, dentre os militares que participavam da reunião estava o general Santos Cruz. Neste dia, duas ferramentas foram apresentadas, uma delas era justamente o sistema Pegasus. Ao olhar o poderoso programa, porém, Santos Cruz teria proferido críticas.
Santos Cruz avisou o presidente Bolsonaro sobre o perigo em trazer a ferramenta da NSO ao Brasil, já que a ala do Exército que participou da experimentação teria optado por não trazer o Pegasus ao Brasil, mesmo com um ministro sendo alvo de crime cibernético.
Após saber da reunião dos militares, Carlos Bolsonaro articulou a exoneração do então ministro. Sete dias depois, a demissão do general Santos Cruz foi publicada no Diário Oficial da União.
Associados a crimes e ataques contra os direitos humanos de civis, jornalistas e ativistas políticos, entre outros, o Pegasus se envolveu em um novo escândalo internacional. A empresa dona do sistema também entrou na 'Black List' (lista negra) pelos norte-americanos, após nove funcionários do Departamento de Estado dos EUA terem seus celulares invadidos com o Pegasus.
Em Israel, país de origem da NSO, os escândalos internacionais provenientes do uso descontrolado do poderoso artefato criaram uma crise interna no país. Ainda sob influência de Benjamin Netanyahu, o governo tomou atitudes drásticas para conter as críticas internacionais, reduzindo de 102 para 37 o número de países com permissão para negociar spywares com Israel.
A mudança foi uma resposta à acusação de que o Ministério da Defesa do país, responsável por aprovar a exportação e a comercialização das ferramentas de espionagem a outros países, autorizava sem restrição a liberação do Pegasus a outras nações.
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