Jamil Chade

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Reportagem

Quilombolas rompem com governo Lula em negociação sobre Base de Alcântara

Entidades quilombolas rompem com o governo brasileiro e deixam, pelo menos de forma provisória, os mecanismos criados para tentar chegar a um acordo sobre o uso da Base Espacial de Alcântara (MA) e a garantia de direitos das comunidades locais.

Em abril de 2023, foi criado um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), com o objetivo de apresentar propostas para a titulação territorial das Comunidades Remanescentes de Quilombos de Alcântara.

O grupo teria de compatibilizar os interesses das Comunidades e do Centro Espacial de Alcântara. O desafio era grande: permitir o desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro, mas sem que a agência crie obstáculos para a garantia dos direitos territoriais das comunidades.

Depois de 40 anos de disputas, a relação entre as comunidades e as autoridades estava desgastada e a esperança era de que, com o novo governo, o diálogo pudesse ser restabelecido para que os direitos dos quilombolas não sejam violados e, ao mesmo tempo, permitir que a base possa se expandir, caso o Programa Espacial Brasileiro ganhe uma nova dimensão nos próximos anos.

A área em disputa poderia envolver 12 mil hectares, onde estão cerca de 2 mil pessoas. Naquele mesmo mês, o estado brasileiro tomou uma iniciativa histórica. Diante da Corte Interamericana de Direitos Humanos em Santiago (Chile), o Brasil reconheceu sua responsabilidade internacional e realizou pedido formal de desculpas às comunidades quilombolas de Alcântara por violações de direitos previstos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

O processo diz respeito à situação de direitos humanos de 152 comunidades remanescentes de quilombos, em Alcântara, no Maranhão, no contexto da instalação do Centro de Lançamento de Alcântara, na década de 1980.

Agora, porém, as quatro entidades que tinham sido convidadas para fazer parte do mecanismo de consultas anunciam o rompimento com o governo e sua saída do grupo de trabalho interministerial.

Deixaram o mecanismo a Associação do Território Étnico Quilombola de Alcântara - Atequila, Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara - Mabe, Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Alcântara - MOMTRA, e os Sindicato dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares de Alcântara - STTR/Alcântara.

"As entidades representativas das comunidades quilombolas de Alcântara comunicam publicamente sua retirada provisória do Grupo de Trabalho Interministerial", afirmam, em uma nota.

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"A permanência das representações quilombolas em tal fórum, como aqui justificado, não resultará na titulação das terras aos quilombolas, na sua inteireza e plenitude, conforme historicamente reivindicando", alertam. "Ao contrário, transmite uma falsa noção de consulta realizada às comunidades quilombolas, legitimando propostas que desconsideram as normas internacionais de direitos humanos e as decisões judiciais já proferidas pelo Poder Judiciário", denunciam.

Segundo eles, o ingresso das entidades representativas das comunidades de Alcântara no GTI se deu como "ato de boa-fé, movido pela crença de que o atual Governo iria, concretamente, mudar o rumo histórico até aqui dado ao caso de Alcântara".

"A retirada dessas entidades da participação do grupo interministerial dá-se de forma coerente com a luta histórica pela garantia incondicional da titulação do território, que requer um diálogo intercultural visando o consentimento informado das comunidades com base nos princípios estabelecidos pela Constituição Federal e pela Convenção Interamericana de Direitos Humanos, e Convenção n. 169 da OIT", insistem.

AGU confirma suspensão, mas espera por retorno

Ao UOL, a Advocacia Geral da União confirmou que, durante a última reunião do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), ocorrida no último dia 25/01, "os representantes da Comunidades Quilombolas de Alcântara manifestaram a necessidade de levar ao conhecimento e debater com as comunidades do território de Alcântara as propostas em discussão no Grupo".

"Por isso, informaram a suspensão da participação no GTI até que realizem essa conversa de modo amplo com a comunidade local. Contudo, ressaltaram que podem rever essa posição a qualquer momento e, inclusive, a depender do diálogo local, voltar a participar da próxima reunião do GTI, agendada para o dia 29/02", apontou.

"A AGU, na função de coordenadora do GTI, continuará dialogando com todos os envolvidos na discussão e buscará nos próximos dias as comunidades para conversas individuais. A Advocacia-Geral acredita que as três propostas apresentadas, e hoje em discussão no GTI, podem convergir para uma solução conciliada e definitiva para o uso compatibilizado da área objeto dos dois interesses públicos relevantes", completou a AGU.

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Novas condições e audiência com Lula

As entidades representativas não descartam a possibilidade de reconsideração do gesto de retirada do GTI. Mas, para isso, "é preciso que governo brasileiro ofereça as condições justas e equilibradas para o debate e, principalmente, disponibilize estudos técnicos e científicos que permitam às comunidades formar opinião e tomar decisões, a partir de dados reais e concretos, bem como apresente o planejamento das ações pretendidas".

"Consideramos extremamente grave que o Estado não possua, em 40 anos, estudos técnicos e científicos sobre seu projeto aeroespacial, e menos ainda, sobre a pretendida expansão do CLA", disseram.

"Não é admissível, nem jurídica, legal ou eticamente aceitável que se pretenda expulsar comunidades tradicionais de suas terras ancestrais em nome de uma expectativa de projeto, dada a completa ausência de estudos e dados reais sobre a proposta", alertaram.

"Mais inadmissível ainda que o Estado brasileiro venha há mais de três décadas negando o direito de propriedade coletiva das comunidades quilombolas de Alcântara em prol de uma expectativa de mercado - aeroespacial - sustentada pelos militares, porém, sem qualquer base técnica e parâmetros/estudos econômicos públicos, conforme demonstrado nas reuniões do GTI", destacam as entidade.

Segundo eles, "não resta alternativa ao governo brasileiro senão a imediata titulação do território, este sim, fundamentado e reconhecido em peças técnicas, acadêmicas e jurídicas amplamente conhecidas por órgãos governamentais".

Em uma eventual reconsideração e retorno ao GTI, as entidades insistem que, antes, querem um encontro com o presidente Lula "para que se possa debater o dever constitucional de titulação do território, na sua totalidade".

"Conforme reiteradamente afirmado no GTI, a imediata titulação do território é condição primeira para o avanço de qualquer debate e negociação com o Estado brasileiro. Nenhum povo planeja seu futuro e decide sobre seu destino sem o título de propriedade em mãos", alertam.

Eles ainda insistem que seus direitos constitucionais "não se negocia, se aplica". "Exigimos que o governo federal cumpra com seu dever constitucional de titular o território quilombola de Alcântara nos termos do laudo antropológico, produzido no âmbito do Inquérito Civil Público nº 08.109.000324/99-28 do Ministério Público Federal", completam.

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Lista de problemas

Segundo as entidades, ao longo das cinco reuniões até agora realizadas, ficou evidenciado que o propósito do mesmo é encontrar uma forma de conciliação entre os interesses dos militares da Força Aérea Brasileira e os direitos ancestrais ao território tradicional, aos recursos naturais e à propriedade coletiva.

Mas os problemas e falta de informação se acumularam. "O Programa Espacial Brasileiro, que arroga para si a prerrogativa de desenvolvimento do Centro de Lançamentos para fins comerciais, porém, nunca apresentou estudos técnicos que justificassem a necessidade de expansão da área atualmente ocupada pelo Centro de Lançamento - de 8,7 mil/ha para 21,3 mil/ha - sobre o território quilombola", dizem as quatro entidades.

"Tampouco apresentou qualquer estudo de viabilidade econômica que permita saber ou estimar quais as reais vantagens econômicas geradas pela aludida política de privatização espacial a ser desenvolvida a partir de Alcântara e que, segundo o governo, demandaria a expansão da Base espacial", afirmam.

Para eles, essas informações constituem primeira etapa necessária para o avanço da consulta prévia, já que possibilitariam o consentimento informado quanto às justificativas, características, viabilidade e impactos da expansão do empreendimento que atingirá, ao menos, 27 comunidades quilombolas do litoral (cerca de 2 mil pessoas).

"A conduta do Estado, ao negar acesso ao mínimo de informações sobre a sugerida expansão do CLA, atinge por completo a noção de uma Consulta informada", denunciam os grupos.

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As entidades também acusam o Grupo de Trabalho de não ter buscado "solucionar a dívida histórica do Estado brasileiro de titular as terras quilombolas".

"Ao invés disso, o Governo Federal "busca alternativas para a titulação territorial" com o mero intuito de reiniciar processo de conciliação dos interesses estatais com os direitos das comunidades no que concerne à utilização de área de 12,645 ha., pertencente ao território quilombola, localizada no litoral", denunciam.

Segundo eles, a tentativa conciliatória já ocorreu e se estendeu por longos cinco anos, tendo sido iniciada em maio de 2008 e encerrada pelo Diretor da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal em janeiro de 2013.

"O encerramento do processo, sem atingir os objetivos conciliatórios, decorreu da falta de providências dos próprios organismos estatais interessados", constatam.

Os grupos também destacam que segundo a Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 2002, a conciliação entre projetos dessa natureza deve se dar "mediante procedimento de consulta e consentimento prévios, livres, informados e de boa-fé".

Desequilíbrio e postura autoritária

Outro problema seria a composição do GTI, que conta com 13 representações ministeriais e apenas 4 representações quilombolas. Para as entidades, isso "revela um drástico desequilíbrio de poder na representatividade dos participantes".

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"Ressalte-se que nenhuma representação quilombola de Alcântara ou de instituição que lhes assessore foi consultada para a edição do Decreto, recebido com grande surpresa quando anunciado na audiência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em abril de 2023", destacam.

Desde o início dos trabalhos, as entidades quilombolas alertaram para o desequilíbrio na sua representatividade e suas possíveis consequências.

"Os pedidos de equiparação de representação não foram atendidos. Igualmente não foi respeitada a solicitação de que, pelo menos, pudessem se somar ao grupo outras entidades, públicas e privadas, com conhecimento técnico sobre o caso, que há décadas atuam em parceria com os quilombolas", explicam.

Segundo eles, essas decisões evidenciam que o GTI não tem o compromisso de estabelecer diálogo que, efetivamente, respeite o equilíbrio de forças e as formas de auto-organização das comunidades.

"De igual modo, reproduz a postura autoritária com a qual o Estado brasileiro trata o caso Alcântara há mais de quarenta anos", constatam.

De acordo com as entidades, essa situação também vai de encontro ao que consta no Documento Base do Protocolo Comunitário sobre Consulta e Consentimento Prévio Livre e Informado (CCPLI) das Comunidades Quilombolas do Território Étnico de Alcântara, publicado e encaminhado formalmente ao Governo Federal, em agosto de 2019.

"Ali está estabelecido pelos quilombolas o caminho para a efetivação de sua Consulta. Essa escolha faz parte do direito à autodeterminação dos povos tribais, protegido pela OIT", dizem.

As entidades ainda apontam como "quebra da boa-fé" a realização de reunião trabalho entre consultorias jurídicas ocorrida ainda no mês de dezembro de 2023 sem a presença das assessorias jurídicas das representações quilombolas para tratar de propostas e instrumentos ou cenários jurídicos hipotéticos de eventual acordo de compatibilização dos interesses em questão.

Segundo eles, o fato "demonstra desprezo em oportunizar efetivamente às comunidades participação nos espaços de decisão e debate, reduzindo as entidades representativas a mera participação alegórica com vistas a legitimar ou anuir a decisões tomadas no âmbito dos órgãos governamentais".

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