Jamil Chade

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Reportagem

Maduro reativou repressão em ano eleitoral, conclui ONU; Brasil silencia

O governo de Nicolás Maduro "reativou a modalidade mais violenta da repressão", apresenta ao público a suposta existência de conspirações fictícias contra sua autoridade e adota posturas que ameaçam as eleições de julho.

Essas são as conclusões do informe da Missão de Apuração de Fatos, criada pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Na apresentação de suas avaliações, nesta quarta-feira (20) na sede da ONU em Genebra, a missão formada por três especialistas internacionais indicou graves abusos de direitos humanos por parte das forças de ordem, impunidade diante dos crimes e "dificuldades" para que os acordos para a realização das eleições sejam respeitados pelo governo bolivariano.

As constatações da investigação contrastam com as falas públicas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que evitou comentar os abusos cometidos pelo governo Maduro. Nos bastidores, os enviados do Palácio do Planalto vêm insistindo com o governo de Caracas sobre a necessidade de que as eleições presidenciais de 2024 ocorram de forma transparente.

Ao tomar a palavra para se defender, na ONU, a delegação da Venezuela acusou as potências de "arrogância", rejeitou a denúncia e chamou as informações de "barbaridades". Para a diplomacia bolivariana, a missão não tem legitimidade e faz parte de uma tentativa de promover a queda do governo.

Maduro prometeu eleições presidenciais para o final de julho. Mas medidas adotadas por Caracas nas últimas semanas vêm deixando a ONU e ativistas de direitos humanos preocupados.

Em outubro de 2023, o governo bolivariano e a oposição chegaram a um acordo em Barbados sobre as condições de realização da eleição. No mesmo momento, Maduro fechou um acordo com o governo de Joe Biden. De um lado, ele garantiria as eleições livres e soltaria prisioneiros políticos. De outro, os norte-americanos retirariam as sanções que abalaram a economia venezuelana.

Nesta quarta, porém, a missão da ONU apontou que, já em 2023, alertou que a "estrutura repressiva do Estado não havia sido desmantelada e continuava a representar uma ameaça latente que poderia ser ativada sempre que o governo considerasse necessário".

Segundo a apuração liderada por Marta Valiñas, "os inúmeros eventos registrados durante o período desta atualização confirmam que estamos enfrentando uma fase de reativação da forma mais violenta de repressão por parte das autoridades". Isso inclui violações de direitos humanos contra pessoas que se opõem ao regime, inclusive "defensores de direitos humanos que ousam criticar, denunciar ou protestar contra decisões ou políticas do governo".

Para a missão, essas ações destacam "as sérias dificuldades em garantir que as próximas eleições presidenciais sejam conduzidas de acordo com o direito de participação em assuntos públicos, conforme previsto no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos".

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Marta, em sua apresentação, destacou ainda que as autoridades venezuelanas passaram a invocar "conspirações" reais ou fictícias para intimidar, prender e processar oponentes ou críticos do governo.

"Os eventos dos últimos meses também destacam os ataques do governo da República Bolivariana da Venezuela a um espaço cívico e democrático cada vez mais frágil", disse Marta. Isso inclui a consideração de uma lei para restringir "ainda mais a capacidade dos atores da sociedade civil de operar de forma livre e independente no país".

O grupo de investigadores ainda conclui que, "à luz dos primeiros resultados de nossas investigações, a missão identificou indícios de que as forças de segurança do Estado continuam a cometer graves violações de direitos humanos, que permanecem impunes".

"Ao mesmo tempo, o Ministério Público continua a operar como parte do mecanismo repressivo do governo para dar a aparência de legalidade à perseguição de vozes críticas", diz Marta, chefe da missão.

Brasil opta pelo silêncio durante reunião da ONU

Ao contrário de diversos governos latino-americanos, o Brasil se manteve em silêncio durante a reunião da ONU sobre a Venezuela e não se manifestou sobre as conclusões da missão de investigação.

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O Itamaraty tampouco se somou a uma declaração conjunta feita por Canadá, Chile, Guatemala, Equador, Paraguai e Argentina, denunciando a repressão e pedindo que os prisioneiros políticos sejam liberados. Maduro ainda foi criticado pelos governos europeus e pelos EUA.

O governo do Chile, liderado pela esquerda, afirmou que é preocupante que a repressão continue na Venezuela, além da censura e intimidação.

Já o governo russo acusou o Ocidente de "usar os direitos humanos para colocar pressão sobre Venezuela" e justificar sanções que "sufocam o país". Para o Kremlin, as acusações são "fabricadas". China, Irã e Cuba também saíram ao apoio de Maduro.

Onda de prisões e desrespeito a acordo com oposição

Segundo a investigação, um dos fatos que chama a atenção é a impossibilidade de que María Corina Machado, uma das líderes da oposição, possa concorrer nas próximas eleições — depois da assinatura de um acordo entre a oposição e o governo. Mas, para a missão, a repressão vai além e envolve o uso de supostas conspirações para justificar atos contra opositores.

Ainda em 2023, o MP venezuelano anunciou que havia solicitado mandados de prisão para 14 pessoas ligadas a uma conspiração contra a realização do referendo consultivo sobre uma eventual anexação de parte do território da Guiana. No grupo estavam vários líderes políticos no exílio, três membros do Comitê Nacional da Vente Venezuela e o presidente da ONG Súmate. Este último foi preso e liberado semanas depois sob medidas alternativas.

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O ano de 2024 começou com anúncios e ações das autoridades venezuelanas que foram ainda menos encorajadoras para o respeito e o exercício dos direitos humanos.
Alerta da missão da ONU

Em 15 de janeiro, em sua mensagem anual à nação, Maduro declarou que quatro conspirações para organizar golpes de Estado ou assassiná-lo e a outras autoridades haviam sido desarticuladas em 2023. Em resposta, o presidente pediu a "ativação da Fúria Bolivariana".

A chamada "Fúria Bolivariana" já resultou, em março de 2020, em uma infinidade de atos de assédio e ataques contra indivíduos da oposição. Agora, o mesmo padrão de repressão violenta parece estar se repetindo.
Marta Valiñas, da ONU

Também em janeiro, o procurador-geral revelou uma conspiração, que ele chamou de Operação Braçadeira Branca, que tinha como suposto objetivo assassinar Maduro e outras autoridades. O Ministério da Defesa publicou uma lista de 33 militares que foram rebaixados e expulsos das forças armadas, acusados de "conspirações".

Segundo a ONU, "esses anúncios foram relacionados a uma nova onda de prisões de opositores do governo".

Eis as principais acusações por parte da missão internacional:

Em 14 de dezembro de 2023, um oficial militar foi detido na fronteira com a Colômbia. Sua prisão só foi confirmada um mês depois pelo Procurador-Geral, que tornou público um vídeo no qual o soldado se incriminava no planejamento da chamada Operação Braçadeira Branca. Até agora, os membros da família não conseguiram entrar em contato com essa pessoa. A missão continua a investigar as circunstâncias dessa prisão.

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Em 17 de janeiro de 2024, as forças de segurança invadiram a sede do sindicato dos trabalhadores da educação no Estado de Barinas e detiveram, sem mandado, um líder sindical e membro do partido Vente Venezuela. O líder foi liberado em março sob medidas alternativas.

Em 22 de janeiro, o procurador-geral anunciou que, no âmbito da Operação Braçadeira Branca, oito pessoas foram presas e mandados de prisão foram emitidos para outras seis pessoas — todas elas exiladas. Entre estas últimas estão a defensora de direitos humanos Tamara Suju e a jornalista Sebastiana Barráez.

Em 23 de janeiro, quatro líderes da campanha Vente Venezuela foram detidos sem mandado. Uma dessas pessoas foi liberada no terceiro dia, enquanto as outras três permanecem presas. Apesar das repetidas solicitações de suas famílias e advogados para obter informações sobre seu paradeiro, as mesmas autoridades que os detiveram desde o início silenciaram. Nenhuma informação confiável sobre o paradeiro deles veio à tona até 27 dias após a prisão, e a audiência de acusação foi realizada após 28 dias. Até o momento, esse é o desaparecimento forçado mais longo investigado pela missão durante esse período de atualização.

Prisão de Rócio San Miguel e outras 18 mulheres

Outro caso investigado é de Rocío San Miguel, uma proeminente defensora de direitos humanos e especialista em segurança. Segundo a missão, ela foi detida sem mandado na manhã de sexta-feira, 9 de fevereiro, no Aeroporto de Maiquetí, quando estava prestes a viajar com sua filha.

"Os parentes e advogados de San Miguel tentaram descobrir seu paradeiro sem sucesso. Somente no domingo, 11 de fevereiro, à tarde, o Procurador Geral reconheceu a prisão da advogada em sua conta X [ex-Twitter], sem informar sobre seu paradeiro", disse Marta.

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Somente na quarta-feira, 14 de fevereiro, as autoridades informaram que San Miguel estava sendo mantida em El Helicoide, um dos centros de tortura documentados pela Missão. San Miguel foi vinculado pelo procurador-geral à chamada Operação Braçadeira Branca.
Marta Valiñas, da ONU

Enquanto isso, no sábado, 10 de fevereiro, a filha de San Miguel, que inicialmente não havia sido detida no aeroporto, foi presa junto com quatro parentes e associados. "Todos eles, juntamente com a própria San Miguel, foram levados perante um juiz nas primeiras horas do dia 13 de fevereiro, depois de transcorrido o prazo de 48 horas estabelecido por lei a partir da prisão de San Miguel", disse a missão.

Para Marta, "essa prática de intimidar familiares e parentes daqueles que são alvo de processos criminais por parte das autoridades é um padrão já relatado em relatórios anteriores da Missão".

Ela lembra que o Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU também expressou publicamente sua preocupação com esse caso. "Imediatamente depois, em 15 de fevereiro, o governo venezuelano suspendeu as atividades da Missão Técnica da ONU e deu a seu pessoal 72 horas para deixar o país. A missão lamenta profundamente essa decisão", declarou a chefe da missão.

Segundo ela, a missão registrou os casos de outras 18 mulheres que permanecem detidas sob a acusação de estarem associadas ou envolvidas em "conspirações" que, de acordo com as autoridades, têm procurado derrubar o governo nos últimos anos. "A detenção seletiva de figuras da oposição ligadas pelas autoridades à chamada Operação Braçadeira Branca continua até hoje", completou.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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