Jamil Chade

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Opinião

Barco com mortos revela oceanos de desespero e ecoa um 'Atlântico Vermelho'

Certa vez perguntei a um refugiado sírio como ele tinha coragem de cruzar um mar num bote precário e sem saber nadar. Como ele tinha coragem de embarcar sua família naqueles fraudulentos esqueletos de barcos?

Sua resposta: só se faz isso quando a terra firme de onde ela partia era ainda mais ameaçadora.

Nesta semana, a descoberta de um barco com corpos de africanos mortos nas costas brasileiras revela a dimensão do desespero de pessoas que apenas buscam o direito de ter um hoje e um amanhã. Um oceano de desespero transformado numa coragem cega.

Viajaram, como tantos que cruzam o Mar Mediterrâneo, conduzidos pelo esgotamento da esperança de que poderiam sonhar com um futuro em seus próprios países.

A descoberta também revela que, diante dos muros erguidos por todas as partes, seres humanos estão dispostos a atitudes cada vez mais arriscadas para sobreviver. Uma das suspeitas é de que aquelas pessoas viram seus mantimentos se esgotar no percurso. Morreram de fome.

A cena no Atlântico de um barco repleto de cadáveres repete o que já passou a ser tão comum no Mediterrâneo que deixou de ser notícia. Salvo quando a hipocrisia europeia ultrapassa o ridículo, como quando alguns desses mortos ganharam a nacionalidade de um país do Velho Continente como "homenagem póstuma" ao serem encontrados também num barco à deriva.

Enquanto isso, os sobreviventes são enjaulados, desumanizados e tratados como delinquentes. O crime? Buscar um porto seguro para seus sonhos.

As cenas do barco na costa brasileira são ainda um recado contemporâneo de que a desigualdade mata, por maior que seja a coragem gerada pelo desespero.

Isso tudo mais uma vez num mar que, de fato, é o depositário e espelho de um verdadeiro genocídio e tragédia do povo negro ao longo de séculos.

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Nesta semana, na ONU, o governo brasileiro inaugurou uma exposição de 22 artistas negros, batizada de "Atlântico Vermelho". Um relato duro e realista de uma rota de pessoas escravizadas. Uma rota marcada por tantas mortes que chegou a mudar o percurso dos tubarões, à espera dos corpos negros que eram atirados pelo caminho.

Uma exposição que, de forma corajosa, desromantiza um oceano que, para muitos, representou o fim de suas identidades, de sua família, de sua cultura e até de seus nomes.

A arte, de fato, perece estar tentando entender a dimensão do drama humano que esses mares-fronteiras representam.

Em Veneza, no dia 18 de abril, o artista César Meneghetti abre a mostra "Naufrágios-Desembarques". Trata-se de uma instalação em homenagem aos 3.000 imigrantes mortos tentando cruzar o Mediterrâneo e chegar ao território italiano.

Com muros tão altos quanto a xenofobia instrumentalizada pela extrema direita, o resultado não é um controle da imigração. Mas a constatação de que o conceito de humanidade não inclui a todos.

Tingidos de vermelho, mares que servem de fronteiras voltam a se transformar em cemitérios de sonhos e, em pleno século 21, em manchas inegociáveis em nossa consciência coletiva.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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