Jamil Chade

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Eleição na Venezuela define hegemonia de China, Rússia e EUA no continente

Segunda maior reserva de petróleo do mundo, a Venezuela vai às urnas hoje para definir não apenas seu futuro. Em jogo, segundo o próprio governo brasileiro, está o destino da América do Sul e a disputa por hegemonia na região entre americanos, russos e chineses.

Nos últimos anos, o país sofreu um dos maiores colapsos econômicos de um país fora de um conflito armado. Hoje, seu PIB é de pouco mais do tamanho da economia de Santa Catarina. Mais de 70% dos venezuelanos vivem abaixo da linha da pobreza e a ONU indica que o país conta com o terceiro maior fluxo de refugiados no mundo. São mais de 6,1 milhões de pessoas fora da Venezuela, crise que supera o êxodo de ucranianos.

Pesquisas realizadas nos últimos dias ainda apontam que, se Nicolás Maduro for declarado como vencedor da eleição, 18% dos jovens indicaram que deixarão a Venezuela até o final do ano.

O temor dos governos e serviços de inteligência do Brasil, Colômbia e mesmo dos EUA é uma ampliação da instabilidade regional e a pressão sobre áreas pobres que terão de continuar a acolher os refugiados e imigrantes venezuelanos.

A crise, porém, é também um debate geopolítico que tem mobilizado as diplomacias. O caos venezuelano abriu um vácuo que tanto russos como chineses tentam se aproveitar para se instalar no que um dia chegou a ser o quintal dos EUA. A decisão do governo de Jair Bolsonaro de romper com Caracas e fechar sua embaixada por anos ainda ampliou o espaço de manobra para potências estrangeiras.

Nada do que Donald Trump tramou para a região funcionou. Juan Guaidó, apoiado pelos americanos, não vingou como presidente autodeclarado. As sanções não derrubaram Maduro e apenas ampliaram o fluxo de refugiados e imigrantes, inclusive para os EUA. Se não bastasse, Caracas reconduziu completamente seu comércio e apoio financeiro ao eixo Pequim, Teerã e Moscou.

A China passou a exportar armas no valor de US$ 700 milhões para a Venezuela, enquanto mais de US$ 20 bilhões foram investidos por Pequim no país, principalmente no setor de energia. Xi Jinping chegou a perdoar parte da dívida da Venezuela, mas iniciou nos bastidores diálogos inclusive com a oposição. A meta: garantir sua posição de maior parceiro do país, independente do destino que o voto tomar.

A aliança chegou a preocupar diplomatas brasileiros nas negociações para a ampliação do Brics. Nos debates, ficou claro que Pequim poderia favorecer a adesão da Venezuela ao bloco dos emergentes, o que ampliaria o sentimento de que a aliança é uma iniciativa contra os EUA.

Moscou, por seu lado, também usou o isolamento criado pela Casa Branca contra Maduro para ampliar suas relações com Caracas, inclusive coordenando posições sobre sanções que ambos enfrentam por parte do Ocidente.

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Assim que a ofensiva de americanos começou contra o governo de Vladimir Putin por conta do risco de uma invasão ao território ucraniano, o Kremlin não excluiu a possibilidade de enviar soldados para Cuba e Venezuela.

O vice-ministro das Relações Exteriores Sergei Ryabkov deixou a porta aberta para a possibilidade de que Moscou estabeleça uma estrutura militar em Cuba e na Venezuela, como uma espécie de retaliação ou uma estratégia de equilíbrio de forças.

A lógica é clara: se americanos querem contar com aliados como a Ucrânia e a Geórgia, nas portas do território russo, Moscou então também teria suas bases na América Latina.

Documentos obtidos pela coluna ainda revelaram como estatais russas e do regime chavista usaram uma rede de intermediários com base em paraísos fiscais para criar empresas. Num dos casos, o braço financeiro do Kremlin usou uma empresa implicada em corrupção e lavagem de dinheiro para fechar um acordo de US$ 1 bilhão com a PDVSA.

Em 2013, a instituição financeira Gazprombank ainda anunciou a criação da PetroZamora, na Venezuela. O banco faz parte da Gazprom, a estatal de energia do governo russo e pilar da estratégia política e econômica de Vladimir Putin.

Biden revê estratégia diante de perda de espaço

A perda de influência levou o governo de Joe Biden a rever a estratégia de sufocar Maduro. O tema foi tratado entre Lula e o presidente americano em março de 2023, abrindo caminho para uma reavaliação da postura da Casa Branca.

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Após meses de conversas sigilosas, um acordo foi fechado em outubro de 2023 para permitir que as eleições pudessem ocorrer, em troca de gestos por parte da Casa Branca sobre aliados de Maduro detidos e até a liberação da compra de determinados produtos venezuelanos.

A guerra na Ucrânia e a necessidade por um substituto aos russos no fornecimento de petróleo também levou Emmanuel Macron a buscar uma aproximação.

Na América Latina, o voto também é considerado como estratégico. O caos político abriu caminho para que o sul do território venezuelano tenha se transformado em uma "terra de ninguém", com garimpeiros, membros das forças de ordem e organizações criminosas operando o contrabando de ouro, muitas vezes usando o território brasileiro.

Trump e Bolsonaro se aliaram, e estratégia fracassou

Ainda em 2020, os governos de Brasil, Estados Unidos e de aliados regionais passaram a monitorar o fluxo de dinheiro e de ouro nas fronteiras em uma tentativa de asfixiar financeiramente o regime de Maduro. Serviços de inteligência, policiais e fiscais da região buscaram congelar contas e impedir que Caracas pudesse contornar as sanções impostas pela Casa Branca ao comércio exterior.

De acordo com pessoas próximas às investigações, o que sempre surpreendeu os EUA foi o fato de que, apesar de todas as ações de embargo e sanções, Caracas continuou a manter uma alimentação financeira mínima para permitir que o governo se sustentasse.

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Parte do resgate vem de russos e chineses, mas os serviços de inteligência da região estimaram que isso não explicaria completamente a sobrevivência financeira do governo. Uma das pistas era o contrabando de ouro de garimpos ilegais, usando caminhos pelo Brasil, para chegar aos mercados internacionais.

Em outubro de 2019, os países que formam o pacto de defesa interamericano TIAR decidiram ativar o tratado com a meta de "atuar coletivamente" na crise da Venezuela. A decisão de ativar o TIAR havia sido denunciado como um gesto ofensivo contra a Venezuela, com a suspeita de que o mecanismo fosse utilizado para justificar uma invasão militar.

Desde o final de 2019, fontes que estiveram nas reuniões fechadas revelaram à coluna que os países membros do TIAR avançaram de forma importante nos trabalhos em Washington. Na agenda estava a troca de informações sobre pessoas supostamente ligadas a Maduro e empresas de fachada que serviam ao regime.

"O Tratado do Rio dá à região uma oportunidade para se adotar, finalmente, medidas corretivas", disse em dezembro daquele ano John J. Sullivan, subsecretário de Estado, que representou os Estados Unidos na OEA (Organização dos Estados Americanos).

Uma lista de nomes de venezuelanos e aliados foi repartida entre os governos. A ideia era de que, em cada um deles, contas e movimentações fossem rastreadas. Eventuais contas encontradas deveriam ser bloqueadas e a meta é a de se fechar o círculo para impedir que o governo possa continuar se abastecendo.

A repressão, porém, não funcionou. Hoje, para as autoridades nacionais, apenas uma estabilização política da Venezuela será capaz de lidar com essa situação considerada como de ameaça à segurança nacional para Brasília.

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Integração regional aguarda definição política em Caracas

O UOL apurou que a situação venezuelana é considerada, dentro do governo brasileiro, como estratégica para destravar a construção de novos projetos na região e o sonho de Lula de retomar o processo de integração sul-americana.

A visão do governo Lula é que, enquanto não houver uma mudança na situação em Caracas e uma normalização diante do mundo, é a própria região que continuará em um impasse. As acusações sobre o presidente Nicolás Maduro, o envolvimento de potências estrangeiras e a guerra estabelecida entre grupos progressistas e a extrema direita pelo continente paralisam os objetivos da política externa brasileira na região.

A repressão impetrada pelo governo Maduro ainda é vista no governo brasileiro como um elemento que alimenta os argumentos da extrema direita na América do Sul e impede que haja um acordo regional para a retomada dos processos de integração e a volta da institucionalização dessa reaproximação.

O Brasil considera que a reconstrução do plano sul-americano é estratégica, tanto para sua projeção no mundo quanto para a estabilização regional. Lula ensaiou algumas ações para reunir os presidentes do continente e costurar posições comuns.

Mas mesmo dentro do Palácio do Planalto, a percepção é de que, enquanto não houver uma normalização da situação da Venezuela, pouco conseguirá avançar nesse sentido.

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Durante a gestão de Bolsonaro, projetos como a Unasul foram esvaziados, e governos que compartilhavam da mesma ideologia tentaram estabelecer iniciativas, sem sucesso.

A esperança é que, com a normalização da situação internacional da Venezuela, a retomada da política externa sul-americana de Lula possa ocorrer.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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