Racismo, obscenidade, mentiras e Deus: um dia na campanha de Trump
Jaime pegou seu telefone e fez uma chamada de vídeo para o filho, que estava em Guadalajara. De forma orgulhosa, contou num castelhano repleto de gírias mexicanas que estava na fila para entrar no Madison Square Garden, no domingo (27), em Nova York, onde assistiria ao comício de Donald Trump. Mas foi obrigado a desligar. A fila estava se movendo e ele não queria perder seu lugar. Ao encerrar a ligação, se uniu com todo seu pulmão ao coro patriótico dos apoiadores republicanos que ecoava pelas ruas de Nova York: "USA! USA! USA!".
O UOL passou nove horas ao lado de apoiadores de Donald Trump, desde a preparação para o comício, dentro da arena e nos arredores do evento, até depois que o ato já havia sido encerrado. Na reta final para a eleição, os republicanos reservaram um dos palcos mais conhecidos do mundo como um sinal de desafio aos democratas. Fariam a festa em uma região que deve votar, em sua maioria, em Kamala Harris.
O que a reportagem presenciou, tanto da parte dos discursos oficiais como de seus apoiadores, foi a disseminação sem qualquer constrangimento de ódio, insultos racistas, xenofobia e misoginia, em um ambiente regado por fake news e a convicção de que Trump representa a ruptura em relação ao status quo. A revolução, por essa ótica, está ao lado dos conservadores.
Enquanto cartazes e camisetas faziam apologia às armas e mostravam Trump como Rambo, não faltaram bandeiras de grupos condenados pela tentativa de insurreição em 6 de janeiro de 2021.
O ato seria marcado pela mistura explosiva de uma mensagem ultranacionalista, xenófoba e um apelo a um líder messiânico que seria estabelecido para "salvar" uma civilização ameaçada.
Antes mesmo do evento começar, democratas compararam a escolha do local ao ato nazista de 1939. Poucos meses antes de Adolf Hitler iniciar a Segunda Guerra Mundial, o movimento nazista nos EUA reservou a mesma arena para um comício. Hulk Hogan, personagem de luta livre que encarna a suposta masculinidade na campanha de Trump, afirmou no palco que não via naquela noite nenhum nazista. "Vejo apenas patriotas americanos", disse, com seus músculos à mostra.
Racismo
Mas o evento acabou sendo marcado por piadas e comentários racistas por parte das personalidades que foram chamadas para apoiar Trump. O humorista Tony Hinchcliffe comparou Porto Rico a uma "ilha de lixo". As piadas passaram a ser vulgares quando o mesmo humorista arrancou gargalhadas do público ao comentar que os latinos "adoram fazer bebês". "Não há como sair. Eles chegam lá dentro, assim como fazem em nosso país", disse Hinchcliffe, em uma referência indireta ao orgasmo masculino.
As "piadas" foram rebatidas por políticos até mesmo do campo do republicano, preocupados em perder o voto de uma população estratégica em estados cruciais, como a Pensilvânia. Danielle Alvarez, assessora da campanha de Trump, foi obrigada a emitir um comunicado dizendo que a "piada de Hinchcliffe não reflete a opinião do Presidente Trump ou da campanha".
Mas os insultos continuaram. Tucker Carlson, apresentador e apoiador da extrema direita, ainda ironizou a origem de Kamala Harris, indicando que ela seria a "primeira samoana, malaia, ex-promotora de baixo QI da Califórnia a ser eleita presidente". Seu pai é jamaicano, enquanto sua mãe é indiana.
De forma insistente, a promessa de uma deportação em massa de estrangeiros permeou os discursos, enquanto comentários ironizavam que os imigrantes teriam direito logo a ir aos jogos dos Yankees. "Get Out! (Caiam fora)", gritava o público.
O público se levantou para ovacionar Trump quando ele prometeu a pena de morte para um estrangeiro que matar um americano e prisão de um ano para quem queimar a bandeira dos EUA.
A campanha republicana comemora os melhores votos entre os latinos em décadas, e observadores destacam como a estratégia, desta vez, foi maquiavélica. Para ganhar o voto daqueles estrangeiros que já são legalizados, os republicanos conseguiram criar uma percepção entre os imigrantes já estabelecidos que são as novas ondas de estrangeiros que vão ameaçar o seu próprio "sonho americano".
Ao terminar, um grupo que vestia uma camisa "Latinos for Trump" minimizou o que havia sido dito ali. "Eram apenas piadas", um deles disse. De fato, pesquisas revelam que os latinos questionados sobre as ofensas de Trump, em sua maioria, afirmam que não sentem que as críticas são contra eles.
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
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Mas nada do que ocorreu dentro da arena mais famosa do mundo era exatamente uma novidade. Na fila de mais de duas horas para entrar, a reportagem presenciou como "incentivadores" da campanha circulavam com megafones pedindo que coros fossem formados para xingar democratas.
Não faltavam homens que gritavam, sem qualquer constrangimento, que Harris havia "dormido com todos" para chegar onde está. A reação era de aplauso e risadas.
Não faltavam confusões no uso indiscriminado de ataques contra Kamala Harris por ser supostamente "uma fascista e comunista".
Questionados pela reportagem o que achavam da imprensa, todos os mais de dez apoiadores consultados insistiram que abandonaram os canais tradicionais de televisão dos EUA. "Como vou acreditar numa imprensa que insiste em dizer que não houve fraude na eleição", disse Mary, uma moradora de Nova Jersey. "Todos sabemos que Biden não venceu a eleição", insistiu, repetindo um mantra da campanha de Trump.
Homens e mulheres que estavam ao seu lado, ao entender que se tratava de uma pergunta da imprensa, fizeram questão de repetir que a eleição de 2020 "foi roubada". Quando questionados se tinham provas, a resposta foi uma gargalhada. "Todos sabem", disse um deles.
Jessy, de Nova York, chegou a ameaçar ao ser questionado sobre seu sobrenome e entender que se tratava de um jornalista estrangeiro. "Vocês nos odeiam. Mas vamos caçar cada um de vocês. Ouça o que estou dizendo", disse.
Durante o comício, foram vários os episódios em que os discursos incitavam a plateia a vaiar a imprensa. "Comunistas!", gritou da arquibancada um senhor com um boné escrito "Veterano do Vietnã".
Em seu discurso, Trump voltou a mentir sobre os índices de criminalidade de estrangeiros e insistiu que os EUA tinham sido "invadidos" por imigrantes. "Vamos recuperar o país", prometeu.
Outro ponto martelado por sua campanha se refere aos seus crimes. O tom usado tanto pelos discursos como por seus apoiadores é de que tudo não passa de uma "perseguição".
Israel: nosso melhor amigo
Tanto no comício quanto nas ruas, a presença de Israel era um fator constante. Grupos de jovens se organizaram para mostrar o apoio da comunidade judaica por Trump, cientes de que uma vitória seria um apoio ao governo de Benjamin Netanyahu.
Durante o comício, o tema também surgiu com força. Rudy Giuliani, ex-prefeito de Nova York e atualmente indiciado, insistiu que os israelenses são "nossos maiores amigos". "Os palestinos são ensinados a nos matar desde que têm dois anos de idade", alegou, sem provas. "Estamos ao lado de Israel", garantiu.
O deputado republicano Mike Johnson disse que o movimento de Trump "reverencia nossa herança judaica-cristã", enquanto um empresário deixou claro que seu objetivo é "esmagar a jihad".
Mulheres: o teatro organizado
Com 27 mulheres acusando Trump de uma conduta sexual inadequada ou assédio, os republicanos sabem que o apoio das mulheres não é o ponto forte da campanha. Mesmo assim, os organizadores do comício colocaram, ao fundo do local onde o candidato fez o discurso, uma plateia composta quase que exclusivamente por mulheres.
A recusa em abrir qualquer debate sobre a homossexualidade também era clara. Nos discursos, que se estenderam por sete horas, vários foram os apoiadores que alegaram que os democratas e a esquerda "não sabe o que é mais uma mulher" ou que as escolas não têm o direito de dizer aos meninos que eles têm o direito de gostar de outro menino.
Um artista subiu ao palco para fazer uma pintura de Trump, enquanto explicava que estava sendo alvo de boicote da classe cultural de Nova York. Seu motivo: "Gosto de mulher, Deus e armas".
Humilhação
Um elemento, porém, permeava todos os discursos e o sentimento de um segmento importante dos apoiadores: a humilhação que sentem. Trump, portanto, é a suposta vingança dessas pessoas diante das elites, de um sistema e de um mundo que os abandonou, inclusive culturalmente.
E, para isso, nada mais poderoso que instrumentalizar o fato de Trump ter sobrevivido a uma tentativa de assassinato. A imagem de um homem ensanguentado, que se ergue e grita "Lute, Lute, Lute" servia como um componente de mobilização de uma massa. Pelas ruas, nas roupas e palavras de ordem, o que dava o tom era a imagem de um anti-herói machucado, tanto quanto aqueles que estavam ali, lotando a arena.
"Trump é a salvação da civilização", disse Steve Muller, um de seus aliados. "Teremos uma América para os americanos, e só para os americanos", disse para uma plateia hipnotizada.
Faltando nove dias para a eleição, os EUA vivem uma encruzilhada. Trump sabe disso e lança uma pergunta quase existencial durante o comício. "Quem está disposto a abrir mão de seu direito de ter armas?", questionou.
"Não!", gritou o estádio, em uma mistura de ódio, indignação e a convicção de que não aceitariam mais perder poder.
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