Anistia e turbulência: como eventual volta de Trump impacta Brasil
Uma eventual vitória do republicano Donald Trump nas eleições que ocorrem nesta terça-feira (5) promete desafiar os planos econômicos, políticos e comerciais do governo brasileiro, inclusive na integração regional.
No Palácio do Planalto, a ordem é manter uma relação de "pragmatismo", repetindo o que Luiz Inácio Lula da Silva adotou com George W. Bush há 20 anos. Ou seja: uma crise não partirá de Brasília.
Mas uma ofensiva protecionista de Trump que afete produtos nacionais, sua guerra comercial com a China, uma elevação das taxas de juros ou até um envolvimento no debate sobre uma anistia para Jair Bolsonaro podem forçar o Brasil a uma mudança de rumo.
Assessores de Lula não disfarçam a preocupação sobre uma eventual transformação da Casa Branca num ponto de referência para uma maior turbulência na América Latina, com o fortalecimento de grupos de extrema direita pelo continente.
No Congresso Americano, de forma incipiente, movimentações entre os deputados aliados de Trump apontam para uma potencial pressão sobre o Brasil em temas como liberdade expressão e brasileiros investigados por um potencial envolvimento nos ataques de 8 de janeiro de 2023.
Em março, ao lado de deputados bolsonaristas, o deputado republicano Chris Smith afirmou que "desde o final de 2022, os brasileiros têm sido sujeitos a violações de direitos humanos cometidas por autoridades brasileiras em grande escala".
Quando o X foi suspenso no Brasil, foi a vez do senador de Utah, Mike Lee, pedir que os EUA atuassem para pressionar o país.
Para diplomatas brasileiros, a atuação desses deputados é apenas um "ensaio geral" para algo mais enfático, em 2025. Com Elon Musk como cabo eleitoral, Trump poderia incrementar essa pressão. Ainda no mês de novembro, uma missão de deputados bolsonaristas deve também viajar para Washington, na esperança de elevar a pressão.
"Só não aconteceu um golpe no Brasil em 2023 por não ter apoio dos EUA", disse ao UOL o senador Randolfe Rodrigues (Amapá-PT). Segundo ele, a eleição americana terá um impacto mais profundo no Brasil que a eleição municipal. "Se Trump vencer, o Brasil sofrerá a maior pressão sobre sua democracia desde 1985", acredita. "O impacto na democracia do continente será profundo."
"Bolsonaro diz que vai voltar em 2026. Uma vitória do Trump poderia fortalecer a narrativa do movimento bolsonaristas de que ele está sendo impedido de voltar ao poder", disse Rogério Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog e que, no começo do ano, liderou uma missão de deputados e vereadores brasileiros para dialogar com as autoridades do campo democrático americano.
Para ele, a vitória de Trump "empodera e dá argumentos para que o movimento bolsonarista se viabilize". Um dos impactos poderia ser o fortalecimento da narrativas de que os ataques de 8 de janeiro de 2023 no Brasil e 6 de janeiro de 2021 no EUA foram para supostamente "defender a democracia".
O próprio Trump já sinalizou que, se eleito, irá anunciar um "perdão" aos atores da invasão do Capitólio. Para ele, trata-se de um "dia de amor" e os envolvidos são "patriotas".
"Qualquer mudança ou adaptação na política externa do governo Lula dependerá, antes de tudo, da postura de Trump frente ao Brasil", analisa Guilherme Casarões, cientista político e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV EAESP). Segundo ele, durante sua primeira passagem pela presidência, o republicano mostrou-se desinteressado em temas sul-americanos, com exceção da Venezuela.
Ainda assim, ele aponta que um dos desafios que Lula pode enfrentar é justamente uma "pressão política em defesa de valores como liberdade de expressão e anistia a Bolsonaro, com ameaça de sanções".
Segundo o especialista, outro ponto de tensão pode ser a eventual parceria entre a Casa Branca e a Casa Rosada, "fortalecendo o presidente Javier Milei e esvaziando ainda mais o Mercosul".
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JAMIL CHADE
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Outro desafio, de fato, é no setor comercial. No plano de governo da campanha oficial de Donald Trump, o republicano promete "enfrentar países que trapaceiam e priorizando os produtores americanos em detrimento dos estrangeiros". Traremos nossas cadeias de suprimentos essenciais de volta para casa", diz.
O plano ainda diz que:
O déficit comercial em mercadorias cresceu para mais de US$ 1 trilhão por ano. Os republicanos apoiarão as tarifas básicas sobre produtos fabricados no exterior, aprovarão a Lei de Comércio Recíproco de Trump e responderão às práticas comerciais injustas. À medida que as tarifas sobre os produtores estrangeiros aumentarem, os impostos sobre os trabalhadores, as famílias e as empresas americanas poderão ser reduzidos.
Os republicanos revogarão o status de Nação Mais Favorecida da China, eliminarão gradualmente as importações de bens essenciais e impedirão que a China compre imóveis e indústrias americanas.
Os republicanos reviverão o setor automobilístico dos EUA revertendo regulamentações prejudiciais, cancelando o veículo elétrico de Biden e outros mandatos e impedindo a importação de veículos chineses.
Os republicanos trarão cadeias de suprimentos essenciais de volta aos EUA, garantindo a segurança nacional e a estabilidade econômica e, ao mesmo tempo, criando empregos e aumentando os salários dos trabalhadores americanos.
Os republicanos fortalecerão as políticas Buy American e Hire American, proibindo as empresas que empregam prioritariamente estrangeiros de fazer negócios com o governo federal.
A eleição ocorre num momento importante na relação comercial entre os dois países. Dados da Câmara de Comércio Brasil-EUA (Amcham) e do próprio governo americano apontam que nunca o fluxo de exportação de manufaturas brasileiras atingiu um valor tão alto, com a venda de US$ 29,9 bilhões em 2023. Hoje, o mercado americano é o maior destino de produtos de alto valor agregado brasileiro, superando a China e qualquer outro parceiro.
Apesar disso, os dados apontam para uma queda importante das vendas americanas ao mercado brasileiro em 2023, com uma contração de 26% em comparação a 2022. Hoje, segundo a Casa Branca, o Brasil representa 2,3% do total das vendas americanas no mundo.
Entre os setor privado, o que assusta é o tom protecionista de Trump que, em seus comícios, prometeu a retomada de barreiras comerciais, inclusive contra seus aliados.
Jorge Viana, presidente da Apex — a agência de exportação do governo — destaca a importância do mercado americano e defende, como o Planalto, uma atitude que não esbarre em ideologias. "Nossa diplomacia comercial tem que ser pragmática com quem ganhar", disse ao UOL.
"É a maior economia do mundo, nosso fluxo de comércio é de US$ 50 bilhões de dólares e nossas exportações são de produtos com alto valor agregado", avaliou Vianna, que ainda destaca o fato de o investimento americano ser três vezes o da China no Brasil.
Para ele, porém, o Brasil deveria se posicionar estrategicamente, caso Trump de fato cumpra sua promessa e inicie outra guerra comercial com a China. "O país precisa fazer como o México, que se beneficia comercialmente do contencioso entre EUA e China", defendeu.
Com verdadeiros muros estabelecidos contra produtos chineses, parte do mercado americano foi ocupado por exportações de empresas estabelecidas no México.
Na Amcham, os dados revelam a dimensão que o mercado americano tem para a indústria nacional. Em 9,5 mil empresas brasileiras exportaram para os EUA, um recorde. Juntas, elas somam 3,2 milhões de postos de trabalho.
Mas as preocupações existem. Uma delas seria no setor do etanol, um carro chefe do governo Lula. O temor é de que Trump estabeleça impostos extras, na expectativa de proteger seu produtor local.
Pressão sobre Lula para se afastar da China
Entre os negociadores comerciais brasileiros, a previsão ainda é de que possa existir uma pressão ainda maior para que Lula faça "escolhas" estratégicas, principalmente diante da guerra comercial entre China e EUA no campo da tecnologia, chips e a adoção de padrões.
Casarões também aposta num eventual desafio nesse aspecto, com uma "pressão sobre o Brasil pelo afastamento da China, caso se inicie uma nova fase da guerra comercial e tecnológica sino-americana".
Ele, porém, minimiza a ameaça tarifária. "O tom protecionista, em si, afeta pouco as relações comerciais estáveis entre Brasil e EUA", disse. "Somos exportadores e importadores de manufaturas: se esse setor for duramente afetado, isso poderá exigir uma nova estratégia comercial para a indústria", admitiu.
"No campo agrícola, como os EUA já são protecionistas, a mudança me parece pequena", completou.
Juros e abalo na economia
Um capítulo que ainda preocupa o Executivo brasileiro é no campo macronômico. Algumas das políticas prometidas por Trump poderão aumentar a inflação, o que obrigaria o Fed a atuar e elevar as taxas de juros nos EUA.
Se isso ocorrer, as projeções de crescimento da economia brasileira para 2025 e 2026 poderiam ser afetadas, assim como a própria trajetória do Banco Central de corte das taxas de juros no Brasil.
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