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Jeferson Tenório

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Qual é o limite entre a denúncia e a espetacularização da violência?

Jeferson Tenório

Colunista do UOL

25/07/2022 06h00

Ainda lembro com nitidez de quando eu era aluno no ensino médio, em uma escola pública, e uma professora de história resolveu exibir para a turma o filme "Amistad", dirigido por Steve Spielberg. A película narrava a revolta de escravizados em alto-mar contra seus captadores escravagistas. Lembro que as cenas de degradação humana, que homens e mulheres negras sofriam no filme me incomodavam, mas na época eu não tinha consciência política e nem racial e, portanto, não sabia porquê me sentia daquele jeito. As sessões de terror, violência e humilhação retratadas ali me atingiam com força, de modo que não queria ser identificado com aquelas pessoas negras, acoitadas em pleno Oceano Atlântico.

No entanto, eu estudava numa escola com poucas crianças negras e eu era uma delas. Então quando o filme terminou vi meus colegas brancos me chamarem de escravo, apontarem para a tela da TV e dizerem que aqueles homens negros retratados com tanta falta de dignidade, e em situações de humilhação eram meus parentes. Ser associado a escravos, entre risos e piadas, me colocava numa posição de violência sustentada pelo racismo recreativo tão arraigado no Brasil.

É inegável que a cobertura da violência pela grande mídia influencia no comportamento das pessoas e no modo de como lidamos com as nossas tragédias cotidianas. Casos emblemáticos como o de George Floyd, por exemplo, causam grande comoção pública. Assim, a exposição da violência em corpos negros serve tanto para incentivar movimentos contra o racismo, como também para retroalimentar comportamentos e a normalização da degradação humana.

Tal normalização dessa degradação me fez refletir sobre os limites entre a necessidade da denúncia e a espetacularização da violência. Toda comoção diante da brutalidade abre a possibilidade de pré-julgamentos e que, de certo modo, pressiona a opinião pública para que a justiça seja feita. Entretanto, a espetacularização projeta, na verdade, mais anseio por violência. Porque em tempos como o nosso, experimentamos uma sociedade que não busca justiça, mas vingança e o desejo de mais e mais cenas violentas.

O filósofo Byung-Chul Han, em "A topologia da violência", traz uma reflexão interessante sobre a origem da barbárie. Han constata que esse fascínio pela tragédia está relacionado com aquilo que Freud denominou como "impulso de morte", gerando impulsos destrutivos e que vão circulando numa espécie de pisque social, até serem realizados de forma concreta. Na verdade, o desejo pela violência num país racista como o Brasil, essa exposição de imagens de pessoas negras, sendo agredidas e mortas, ganha contornos que, num certo sentido, reforçam o imaginário de barbárie contra a própria população negra.

Mas afinal qual é o limite entre filmar, registrar e denunciar a violência e a reprodução dela como consumo em busca de engajamento nas redes e mídia em geral? Talvez a primeira coisa a dizer é que é sempre importante denunciar e nos indignarmos com o racismo, assim como outras formas de violência, porque são com essas denúncias que o Poder Público pode agir. Por outro lado, tenho a impressão de termos entrado num caminho sem volta. Pois a espetacularização da violência já faz parte do processo perverso da modernidade, ou seja, o terror se tornou uma experiência de consumo permanente. É só observarmos a audiência de programas policiais ou a repercussão de notícias acompanhadas de imagens brutais. Em outras palavras: a fronteira entre a civilidade e a barbárie já foi rompida e já tratamos isso com normalidade.

A manutenção do espetáculo dessas cenas violentas também ofusca, de certo modo, as outras violências cotidianas que pessoas negras, por exemplo, sofrem todos os dias. Como se o racismo operasse apenas em situações explicitas, trágicas e brutais. Como se a ausência do Estado no atendimento às necessidades básicas da população negra, também não fosse uma forma de racismo. Ora, a falta de uma estrutura social eficiente como saúde, educação e moradia também são modos de violências, mas não ganham espaço como prioridade nas pautas midiáticas. Ainda lembro em minha infância que ao assistir reportagens contendo cenas violentas, os apresentadores pediam para que as crianças fossem retiradas da sala. Hoje temos apenas a expressão "contém gatilhos". E lembrado que a palavra "gatilho" também está dentro de uma gramática da violência.

Portanto, me parece que a exposição de corpos negros em cenas trágicas reforça o imaginário desses mesmos corpos encerrados no espaço da violência. Mais do que isso, reduz e limita, ainda dentro da lógica branca e racista, a existência de negros e negras enquanto pessoas. Como se degradação fosse a única forma possível de viver. A espetacularização naturaliza e localiza esses corpos negros como a única possibilidade de existência.

Então como fugir dessa lógica perversa? Como não atender ou ceder a espetacularização da violência diante de tanta barbárie? Sinto que não tenho esta resposta, mas creio que um dos caminhos é o de recuperamos um certo decoro individual e coletivo. Repensar como chegamos até aqui. Percebermos que a indiferença diante da dor do outro é a nova forma de consumo. Portanto, se a política foi inventada para conter ou evitar a barbárie, vemos que ela se transformou na própria violência.