Quem tem medo da literatura negra contemporânea?
Dias atrás, numa rede social, um escritor branco sulista disse que preferia ler o escritor norte americano Philip Roth a ler Conceição Evaristo. Para além do gosto (e não me surpreende que a declaração tenha vindo do Sul), e de ser uma afirmação tosca e redutora, tal pensamento nos leva a uma falsa comparação de estilos e que esconde, na verdade, um ressentimento e uma certa ansiedade daqueles que sempre tiveram privilégios e facilidades.
Digo que é uma comparação redutora porque a ideia de exclusão sempre foi uma ideia colonialista. Creio que seja bastante possível gostar de Roth e Conceição, meu caso, por exemplo. É possível ler Marcel Proust e Carolina Maria de Jesus, e ambos oferecem ao leitor visões que se distanciam, mas que também se complementam.
Ler autores e autoras diversas amplia nossa percepção de mundo. É uma constatação óbvia, mas parece que o óbvio precisa ser dito.
A imagem da escritora Conceição Evaristo sendo aplaudida na chegada à Flip (Festa Internacional de Paraty) deste ano, ou as filas imensas de esperas para assistir ao escritor Itamar Vieira Junior, confirma a força e o reconhecimento da literatura brasileira contemporânea. Revela também uma mudança de mentalidade e uma ampliação daquilo que se entende por literatura.
Em uma das mesas da Flip em que participei a escritora Noemi Jaffe, ao falar sobre o luto, fez reflexões muito bonitas e profundas citando o intelectual francês Roland Barthes e os intelectuais indígenas Ailton Krenak e Kaka Werá, demonstrando o quanto é possível e necessário que possamos ler todas as literaturas, que há confluências entre elas. Não em termos de comparação, mas em singularidade, ou seja, não lemos porque um livro é melhor que o outro, lemos porque aquele livro é singular, porque ele nos diz algo. Lemos porque nos incomoda, porque a história nos dói.
A literatura nos desabriga e não abraça ninguém, mas de certo modo nos oferece alguma coisa que nem sempre conseguimos definir.
A acusação de que a literatura negra contemporânea trata de questões meramente identitárias, como o racismo, por exemplo, é igualmente falsa e é uma reação às mudanças daquilo que é narrado, uma reação a outras histórias que estão sendo contadas e que antes não eram ouvidas.
Livros como os de Eliana Alvez Cruz, Ana Maria Gonçalves, Luciany Aparecida, Cidinha da Silva, Luiz Mauricio Azevedo e Paulo Lins, por exemplo, trazem discussões profundas e complexas sobre a condição humana e que estão muito além de narrativas maniqueístas ou panfletárias.
A literatura é sempre muito generosa e aceita todas as narrativas. O bom leitor é aquele que sabe reconhecer a qualidade literária, mesmo que sua experiência seja muito diferente do que está sendo lido.
Isso é justamente o que a literatura nos oferece de melhor: a possibilidade de vivermos outras vidas que não são as nossas.
Pergunto: o que Raskolnikov, personagem do escritor russo Dostoievski, teria a oferecer a uma realidade brasileira? O que Ponciá Vicêncio, personagem de Conceição Evaristo, teria a ver com os russos?
Acho que ambos podem oferecer algo de universal e particular a esses leitores porque ambos, ao seu modo, nos dizem algo importante sobre a vida.
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