Jeferson Tenório

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Opinião

Trote universitário não é rito de passagem, mas naturalização da tortura

Nesta semana, a Universidade de Santo Amaro, em São Carlos, interior de São Paulo, se tornou o centro das atenções após a divulgação de vídeos em que estudantes de medicina tiraram a roupa e tocaram os órgãos genitais durante uma partida de vôlei feminino. A cena repugnante e misógina trouxe mais uma vez a pauta sobre trotes violentos ou práticas tidas como "tradicionais" nas universidades brasileiras.

Embora alguns centros acadêmicos tenham proposto "trotes cidadãos" ou "solidários", com arrecadação de roupas, comida ou estímulo à doação de sangue, a verdade é que muitos veteranos seguem com suas práticas de humilhações, constrangimentos, misoginia, racismo e todo o tipo de violência física e psicológica nos calouros. Além de relatos de perseguição àqueles que se recusam a se submeter.

Por outro lado, não surpreende que tal comportamento tenha vindo de estudantes de medicina, um lugar majoritariamente branco e composto por uma classe média alta. Talvez essas dinâmicas de tortura, misoginia e constrangimentos sejam apenas reflexo de como esse grupo se coloca na sociedade: detentores de poder e privilégios que os tornam intocáveis, colecionando a sensação de que tudo podem, sem limites e com total indiferença à dor do outro.

Historicamente, o trote teria surgido com o nascimento de universidades europeias, por volta do século 15. Há relatos e documentos que mostram que os trotes, na maioria das vezes, sempre foram violentos e abusivos. Com o passar dos anos, a "tradição" foi se perpetuando até chegar ao Brasil. Aqui, o trote ganhou contornos racistas, homofóbicos e machistas.

@uol Nas imagens, gravadas em maio durante um torneio amistoso entre equipes esportivas de algumas faculdades, homens da faculdade de Medicina da Unisa exibem o órgão sexual durante uma partida de vôlei entre equipes femininas. E não é a primeira vez que a Unisa se envolve em polêmica. Em 2022, o UOL denunciou trotes abusivos da faculdade. #tiktoknotícias #unisa #notícias ? som original - uol

Se a justificativa para tirar a roupa e se masturbar na frente de colegas jogando vôlei é porque "sempre foi assim" ou "é tradição", precisamos questionar justamente as coisas como são e de por que não deveriam ser. Em outras palavras, argumentar que o trote ou práticas de assédio são um rito de passagem e que fazem parte da formação dos alunos significa, antes de tudo, naturalizar a tortura. Aliás, a tortura como sabemos faz parte da estrutura desse país, seja pela escravidão, seja pela ditadura ou por abordagens policiais nas periferias.

Lembremos de trotes que terminaram em tragédia como no caso do estudante da USP Edilson Tsung Chi, que em 1999 foi encontrado morto boiando numa piscina, após um encontro entre calouros e veteranos. Bebidas, violência e abusos tomam proporções que culminam em episódios como esse.

O ambiente acadêmico já é por si só um lugar hostil para mulheres, negros, pobres e todos aqueles que são oriundos das minorias. A universidade definitivamente não é um espaço de circulação de afetos, mas, por vezes, uma máquina de constante desumanização. O trote é nada mais do que mais um desses instrumentos que colaboram para a perpetuação do movimento patriarcal, racista e classista.

Atitudes como essas não devem ficar apenas na expulsão dos estudantes, mas também em uma penalização jurídica. Além disso, precisamos repensar o papel dos próprios cursos no sentido de que o ambiente acadêmico seja mais humano e acolhedor. Penso que, quanto maior a diversidade de estudantes, mas humana ele se tornará.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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